Quarta, 2.
O meu sono anda sacudido por um enxame de
pressentimentos, reflexos de coisas a provir, palavras baralhadas na confusão
dos sentidos, agitadas de fora para dentro, fulminações que apetece tocar,
palpitações siderais à hora em que a noite se acolhe nos beirais da casa e do
silêncio do mundo não chegam senão ciciamentos desconexos, pequenos toques que
não chegam para acordar quando ainda não consegui conciliar o sono, como se o
meu cérebro fosse um braseiro aceso pela noite dentro para orientar fantasmas e
fantasias, hosanas e aleluias.
- Petisquei no Vela Latina com o Fernando que ali tem poiso e talheres.
Todos me procuram como se ignorassem o lugar onde sempre estive a assistir ao
cortejo dos génios e salvadores da Literatura, utilizada como passagem à espécie
de “intelectuais”. Para mim, escrever é um acto sagrado e, como tal, íntimo. Saber
que alguém me lê, é como ver-me despido na praça pública.
- A propósito, estou a rever pela quinta vez O Rés-do-Chão de Madame Juju. Mas agora ao contrário, quero dizer,
do fim para o princípio. Julgava eu que esta maneira original de o ler, me
punha a salvo da promiscuidade do texto, mas estou a descobrir que não. Há,
contudo, um facto a registar: considero que estou mais sensível a gralhas e corruptelas
do texto. Mas não me livro da cumplicidade com as personagens, o seu
envolvimento, sabendo minuciosamente onde cada uma escorrega, soluça, revolta,
extasia. Sei de memória cada milímetro da acção e percorro as quinhentas
páginas tomado do deslumbre que os meses entretanto interpuseram. Aqui e ali
salto na cadeira emocionado, mais além insatisfeito. Vindo não sei de onde,
instala-se um nervosismo miúdo, uma ansiedade dispersa, um pavor duro. Até que
escorrego - a páginas 385 encontrei mais duas gralhas - que fazem soar aos
ouvidos campainhas estridentes. Definitivamente, não consigo dizer a mim
próprio: “Desiste. A perfeição não é deste mundo, e o mundo de hoje não a procura.
Rente-te à evidência – perfeito só Deus.”
- Justamente, uma vez mais, vou hesitando em escrever ao ilustre
latinista José António Segurado e Campos para lhe dar conta de meia dúzia de
gralhas tipográficas que deparei no seu fabuloso trabalho sobre Marco Túlio
Cícero (vol. I) para a Fundação Calouste Gulbenkian. Quando vencer o arrojo de
me dirigir a tão distinto Professor Catedrático, vou mesmo assinalar-lhe aquilo
que desfeia um trabalho artístico de suprema importância. São pequenas coisas
eu sei, mas ainda assim tendo em conta que um livro é uma obra de arte, o
esforço de anos, a luta pela perfeição, é meu dever acrescentar um resto de
vigilância de alguém que lê atentamente e não salta nenhuma palavra e muito
menos páginas. Além de ser também o reconhecimento pelo muito que ele me
transmitiu.