terça-feira, fevereiro 02, 2016

Quarta, 2.
O meu sono anda sacudido por um enxame de pressentimentos, reflexos de coisas a provir, palavras baralhadas na confusão dos sentidos, agitadas de fora para dentro, fulminações que apetece tocar, palpitações siderais à hora em que a noite se acolhe nos beirais da casa e do silêncio do mundo não chegam senão ciciamentos desconexos, pequenos toques que não chegam para acordar quando ainda não consegui conciliar o sono, como se o meu cérebro fosse um braseiro aceso pela noite dentro para orientar fantasmas e fantasias, hosanas e aleluias.   

         - Petisquei no Vela Latina com o Fernando que ali tem poiso e talheres. Todos me procuram como se ignorassem o lugar onde sempre estive a assistir ao cortejo dos génios e salvadores da Literatura, utilizada como passagem à espécie de “intelectuais”. Para mim, escrever é um acto sagrado e, como tal, íntimo. Saber que alguém me lê, é como ver-me despido na praça pública.

         - A propósito, estou a rever pela quinta vez O Rés-do-Chão de Madame Juju. Mas agora ao contrário, quero dizer, do fim para o princípio. Julgava eu que esta maneira original de o ler, me punha a salvo da promiscuidade do texto, mas estou a descobrir que não. Há, contudo, um facto a registar: considero que estou mais sensível a gralhas e corruptelas do texto. Mas não me livro da cumplicidade com as personagens, o seu envolvimento, sabendo minuciosamente onde cada uma escorrega, soluça, revolta, extasia. Sei de memória cada milímetro da acção e percorro as quinhentas páginas tomado do deslumbre que os meses entretanto interpuseram. Aqui e ali salto na cadeira emocionado, mais além insatisfeito. Vindo não sei de onde, instala-se um nervosismo miúdo, uma ansiedade dispersa, um pavor duro. Até que escorrego - a páginas 385 encontrei mais duas gralhas - que fazem soar aos ouvidos campainhas estridentes. Definitivamente, não consigo dizer a mim próprio: “Desiste. A perfeição não é deste mundo, e o mundo de hoje não a procura. Rente-te à evidência – perfeito só Deus.”   


         - Justamente, uma vez mais, vou hesitando em escrever ao ilustre latinista José António Segurado e Campos para lhe dar conta de meia dúzia de gralhas tipográficas que deparei no seu fabuloso trabalho sobre Marco Túlio Cícero (vol. I) para a Fundação Calouste Gulbenkian. Quando vencer o arrojo de me dirigir a tão distinto Professor Catedrático, vou mesmo assinalar-lhe aquilo que desfeia um trabalho artístico de suprema importância. São pequenas coisas eu sei, mas ainda assim tendo em conta que um livro é uma obra de arte, o esforço de anos, a luta pela perfeição, é meu dever acrescentar um resto de vigilância de alguém que lê atentamente e não salta nenhuma palavra e muito menos páginas. Além de ser também o reconhecimento pelo muito que ele me transmitiu.