Quarta, 10.
Há sempre no dia um aceno de
misericórdia. É quando, no desfiladeiro da luz, desce em cascatas a escuridão. Nesse
momento imobilizo-me e fico por largo tempo na fenda que se instala e causa
pavor e frio e pressentimentos. Hirto observo as sombras, o crepúsculo que
invade o salão, baixa o rumor das árvores, recolhe o cantar dos pássaros e
deixa lá fora um sussurro arrastado onde o silêncio profundo não tem espaço. De
quando em quando passa uma rajada de vento trazendo nas suas asas o derradeiro
facho de luz. Há como que uma luta entre
a luz e as trevas, durante a qual a terra não pertence a ninguém - nave
suspensa levada pelo espaço sideral onde as estrelas vão faiscando aqui e
acolá. É terrível este momento, porque causa tanta incerteza, porque é um
desafio à mente humana, ao equilíbrio que nos permite suportar a ausência de
nós quando mergulhamos nas profundezas do sono. Estendo a vista até ao fundo da
quinta. As árvores estão desenhadas na entretela do céu e formam um muro branco
onde a escuridão tem dificuldade em assenhorear-se. Na pulcritude que vai
descendo, não dou conta de nenhum ramo agitar-se ou coelho saltitar no chão de
erva com meio metro. Sou capaz ainda de chamar as árvores todas pelos seus nomes,
não só porque as conheço à luz do sol, mas porque as distingo no lusco-fusco
que se espraie a toda a velocidade. Não tem cinco minutos que acendi a luz do
candeeiro junto ao cadeirão onde costumo sentar-me para ler, ouvir música,
pensar. Hesito em fechar as portadas das janelas e portas, porque quero estar
firme no meu posto de observação quando a noite empurrar definitivamente o dia.
É tão misterioso esse instante! No campo o dia e a noite são traçados a
esquadro e nós temos a sensação que somos parte desse desenho, que somos as
próprias linhas, a rachadura que separa um da outra. Esta interpenetração mexe
connosco, aproxima-nos das alturas, acede-nos ao sublime enigma que a natureza
revela àqueles que aprenderam no silêncio o seu código. É inebriante, confuso,
profundo! Não deve ser por acaso que o silêncio é a linguagem de Deus. Há algo
que nos irmana quando olhamos o firmamento estrelado e vemos cintilar no escuro
azulado a presença enigmática do sobrenatural que nos extasia, nos prega os
olhos na cruz de luz ou sombra sem configuração, perdida no incomensurável do
infinito, que nem o corpo nem a alma conseguem vislumbrar, mas que a presença
nos abraça num estreito e doce e terno sentimento de não estarmos sós. Essa
emoção é mais forte e mais próxima quando o dia declina e a noite embrulha a
terra. Como nesta hora quando acabei de trancar portas e janelas e de expulsar não
só os fantasmas como os demónios, donos das sombras e cada vez mais senhores
dos dias, desde que a humanidade trocou a Natureza por todas as imundices que acredita
serem salvadoras do universo e da dignidade humana. Disto e de muitas outras
coisas questionarei ao serão o atento candeeiro.