Quarta, 3.
A esplanada do Vera Latina, em Belém,
estava repleta de turistas. Batia um vento frio quando a sombra varreu o
espaço, não o cobrindo completamente, deixando algumas manchas de sol onde os
pássaros e pombas pousavam nas cadeiras e guarda-sóis. O magnificente chapéu
que é o centenário pinheiro, aberto em copa, como uma escultura esculpida por
um artista desbragado de ideias e deslumbres, compunha com a sua beleza o lugar
decorado com calçada portuguesa. Por revoadas, os clientes iam e vinham. Por
momentos apenas ficava eu a aguardar a vinda do meu amigo que telefonara a
avisar que estava atrasado. Do outro lado, a estrada atravessada constantemente
por carros malucos, um edifício branco para onde o sol se despachara avivando o
branco cru que feria quando o fixávamos. A tarde, ao correr das horas, trouxera
consigo a Primavera antecipada no fio do ar cheio das recordações de outros
tempos quando no mesmo local, com mesma
companhia, discutia os alvores da democracia. A Maria Antónia Palla, nossa
colega, estava também, e foi como se o passado se sentasse à mesma mesa
desafiando as penumbras da nostalgia. Mais tarde, fui sentar-me no interior, perto
da vidraça que dá para o alegrete. De súbito, chegara o Inverno. As folhas dos
arbustos agitavam-se, a rua tornara-se sombria, o conforto da sala estreitado
ao corpo, soltava pequenos arrepios de prazer. Estava ailleurs.
- Como nos tempos em que regressava a casa de carro ao início da noite,
também ontem aconteceu voltar a viver o desagrado de quem trabalha ou habita
no centro das cidades. Tinha ido ao encontro do Simão com quem conversara em
frente à sua livraria, naquela rua enfunada pelos ventos que vêm do Tejo. O
frio tinha já engrossado e eu estava mal agasalhado. A noite descera sobre a
capital e os transeuntes rabiavam para a deixar procurando meios de transporte
consentâneos com as suas possibilidades. Mas a conversa estava quente, os temas
interessavam-me sobremaneira mais a mais porque o meu amigo tem feito um
esforço para que O Rés-do-Chão de Madame
Juju saia pela chancela de algum pequeno editor que são quem melhor trata o
escritor e o livro. Depois, meti-me no carro e atravessei a cidade. Quem me
acode! Como podem as pessoas exibir um sorriso quando têm ao fim de um dia
de escravos suportar filas incomensuráveis, condutores selvagens e primários,
ziguezagues monstruosos, tempos infinitos para fazer escassos quilómetros. Os
que moram na cidade, também não estão melhor. A agressividade, o ruído, a
poluição, a vizinhança, os transportes, o lixo, os perigos, o abandono e a solidão
a que estão entregues, tudo isso mais a falta de qualidade de vida em todo o
sentido, é causa e efeito do encurtamento de vida e sintoma de doenças que sub-repticiamente
se acomodam.