Quinta, 18.
É sempre um grande prazer estar com o
casal Couto, dois seres extraordinários cujos corações não envelheceram e o que
neles envelheceu não chega para os alienar num suposto resultado atalhado na
esquina da vida. Só eles me faziam sair de casa ontem sob temporal como raras
vezes experimentei ao volante do carro. Não se via a estrada a mais de uns
cinquenta metros dadas as cordas de chuva e nevoeiro que se dissipou ao entrar
na Ponte Vasco da Gama. A mesa estava montada na velha peça inglesa, junto à
janela de onde se vê o bairro e mais ao longe o rio. A atmosfera fez-me
recordar outros serões na antiga casa de Campolide, à mesma mesa, mas em face
de outra janela e outro enquadramento paisagístico. Oh, trava as recordações!
Não te metas nessas vielas onde as trevas inundam os espaços. Vive o instante,
faz dele o único momento capaz de resumir os anos que levas de amizade e
convívio com aqueles que conhecestes na aurora de uma noite sideral, à porta do
cinema S. Jorge, quando o ritmo de vida era ainda o grande desfrute das emoções
apanhadas nas tardias horas tocadas de assombros sociais e políticos. Ao menu,
felizmente, desta vez não surgiu a política (eles são ambos socialistas e esse
é o único pecado que lhes reconheço...). Couto muito interessado no enredo de O Rés-do-Chão de Madame Juju, soltou-me
as palavras e estas jorraram desmontando o puzzle que levou dois anos e meio a
escrever e vinte a magicar. Contei-lhe da surpresa da Annie quando num fim de
tarde entra no meu quarto e vê a cama
coberta de pequenos pedaços de papel, cadernos, bilhetes de autocarro, do
metro, envelopes, tampas de caixas de fósforos, entradas em cinemas, e tudo o
que durante anos fui anotando a torto e a direito da inspiração e daquilo que o
mundo nas vozes desta e daquele, sofregamente registava para não olvidar. Annie
nem queria acreditar no que via e o filho mais velho que nesse momento tinha
subido para me cumprimentar, recuou espantado com as centenas de bocados de
papel que enchiam literalmente a coberta. Os Couto diziam-me que era urgente
encontrar um editor. Eu fiz-lhes a resenha do caminho trilhado nesse sentido e
não esqueci de lhes dizer que não tenho vaidade ab-so-lu-ta-men-te nenhuma em
me ver editado por qualquer desses fabricantes de papel que, de resto, tendo
lido o romance o acharam “de interesse comercial garantido”. Um susto! Esta
simples frase, deixou-me no limite da revolta e prova a minha desconfiança face a
uma actividade que devia ser de ideias, de arte, de valores, de partilha, de
interpelação, e não passa afinal de um monstruoso circuito de interesses,
caganças, misérias morais e humanas.
- A querida família tão cara à Igreja e aos poderes terrenos instituídos
está em ruína. São tantos e tão diversos os casos de casais que se matam,
abandonam os filhos, atiram-nos ao Tejo como o mais recente, que se torna
impossível prosseguir na ideia de que a “instituição” é o sustentáculo do
equilíbrio, da nação e dos valores morais. Mais: toda a tragédia desses
encontros frustrados e violentos, desagua nas televisões onde não há o mínimo
respeito e reserva pelo sofrimento daquelas e daqueles que a loucura levou ao
limite. Uns senhores e umas senhoritas, refastelados nos cadeirões onde ganham
a vida tecendo moralidades de pacotilha, à revelia do respeito e da intimidade
das suas vítimas, contra o que se investiga nos tribunais e antes da condenação,
expõem como se de um espectáculo vulgar se tratasse, toda a sorte de imagens, comentários,
sentenças e reprovações. O espelho terceiro-mundista começa neles e na
informação deturpada, arranjada, passada na trituradora das emoções, que fazem
da imprensa escrita e televisiva uma indecência festivaleira onde vale tudo até
a mentira que destrói a honra e a vida daqueles que estão já na sarjeta. Tudo
isto – dizem eles - em nome da justiça, da moral e da dignidade humana.