Quinta, 19.
Há alturas em que devia cozer a boca
porque detesto ter que a abrir para vociferar uma vez mais contra a imundice de
país onde tive a pouca sorte de ter nascido. Prefiro a condenação à solidão que
exibir-me em palavras revoltadas contra a sorte que me coube. Todos vivem na
vanidade absoluta que não é mais que uma forma de encher o vazio que os habita.
Prefiro concentrar-me na escrita a ser desafiado pelas coisas desprezíveis
que encantam todo esse mundo de gente cristalizada no fátuo.
- E sobre a escrita, de passagem, este apontamento: cortei a eito duas
ou três páginas do que havia dito ontem. A minha pessoa com a vida que a enche,
nada fazia no contexto da história. Estava liminarmente a mais. As personagens
não precisam de mim, eu não sou parte delas, por si só possuem uma
personalidade, um mundo preenchido do que toca profundamente uma existência,
para que eu me imiscua, modele ou invente dramas e conflitos, situações e
respostas, amores e desamores.
- Por outro lado, não queria voltar à técnica que utilizei em Matmatu onde vários planos da narrativa
se cruzam, intimam, obrigam o leitor a uma atenção extrema. De resto, assim que
termine este romance, passar-me-ei de armas e bagagens para ele, onde o hercúleo
trabalho de reestruturação me espera. Vou tentar resolver o problema com uma
forma textual, digamos, gráfica. Tenho andado a pensar no assunto e julgo ter
encontrado a fórmula que me permita manter a estrutura da narração sem afectar
a ideia concepcional.
- E o mundo? Como vai ele, chère
Agnès? Compulsivamente mal. Um ataque imprevisto ao Museu Nacional do
Bardo, em Tunes, atribuído aos loucos da Daech, matou 22 pessoas entre turistas
polacos, espanhóis, franceses, alemães, alguns tunisinos e dois dos
malfeitores. O museu onde eu passei manhãs calmas e meditativas, verdadeiro
paraíso no centro da cidade, perto do Parlamento, com a magnífica avenida
Bourguiba a estender-se ladeada de palmeiras e o brouhaha das suas gentes, não
merecia aquele intempestivo assalto até porque era, é, um local de liberdade,
de ensinamento e de concórdia. A democracia foi implementada ao fim de anos e
anos de regimes autoritários e deve decerto ser por si só no mundo árabe um
atentado aos fanatismos islamitas. Com fronteiras com a Argélia e a Líbia, é
evidente que é daí que vêm aqueles que a pretendem enfraquecer.
- Em Israel ganharam os mesmos. Isto quer dizer que a criação e
reconhecimento geral do Estado Palestiniano ficou adiado. Dentro de pouco
tempo, prosseguem os ataques, a destruição e a matança de árabes indefesos.
Depois surpreendem-se que os fanáticos opostos à suas ideias sejam selvagens.
- O Banco Central Europeu inaugurado em Frankfurt, foi motivo de grandes
e ruidosas manifestações contra os gastos num projecto dispensável quando os
Estados abandonaram os povos à sua sorte, reduziram os cuidados na saúde, na
educação, transformando-os em zumbis enfraquecidos e desesperados. Quinze a vinte
mil pessoas montaram barricadas, incendiaram e destruíram tudo o que
encontraram na frente. Toda a gente em desacordo com a sociedade nascida do
euro, só eles, os que ganham com isso, persistem em achar que estamos nos
melhores dos mundos.
- Por cá não podemos calar aquele atentado aos mais elementares
princípios democráticos que foi a lista dos VIPs contribuintes. Em consequência
demitiu-se ontem o director-geral do Fisco, ou antes, deve ter sido convidado
ao sacrifício, com a promessa de que, assentada a poeira, logo guindará a outro
alto posto. Para a sopa dos pobres não vai e muito menos terá que vender
património para sobreviver. A mim porém, o que me surpreende é o facto de esta
gente ser tratada com pinças. Então não é verdade que eles estão obrigados a
fornecer todos os anos a lista dos seus bens, nesse caso porque razão, como a qualquer
contribuinte, não terão os funcionários das Finanças direito ao acesso da sua
vida contributiva! Salazar deixou muita semente por cá e a pouco e pouco ela
vai germinando de um extremo ao outro do espectro partidário.