quinta-feira, março 19, 2015

Quinta, 19.
Há alturas em que devia cozer a boca porque detesto ter que a abrir para vociferar uma vez mais contra a imundice de país onde tive a pouca sorte de ter nascido. Prefiro a condenação à solidão que exibir-me em palavras revoltadas contra a sorte que me coube. Todos vivem na vanidade absoluta que não é mais que uma forma de encher o vazio que os habita. Prefiro concentrar-me na escrita a ser desafiado pelas coisas desprezíveis que encantam todo esse mundo de gente cristalizada no fátuo.  

         - E sobre a escrita, de passagem, este apontamento: cortei a eito duas ou três páginas do que havia dito ontem. A minha pessoa com a vida que a enche, nada fazia no contexto da história. Estava liminarmente a mais. As personagens não precisam de mim, eu não sou parte delas, por si só possuem uma personalidade, um mundo preenchido do que toca profundamente uma existência, para que eu me imiscua, modele ou invente dramas e conflitos, situações e respostas, amores e desamores.

         - Por outro lado, não queria voltar à técnica que utilizei em Matmatu onde vários planos da narrativa se cruzam, intimam, obrigam o leitor a uma atenção extrema. De resto, assim que termine este romance, passar-me-ei de armas e bagagens para ele, onde o hercúleo trabalho de reestruturação me espera. Vou tentar resolver o problema com uma forma textual, digamos, gráfica. Tenho andado a pensar no assunto e julgo ter encontrado a fórmula que me permita manter a estrutura da narração sem afectar a ideia concepcional. 

         - E o mundo? Como vai ele, chère Agnès? Compulsivamente mal. Um ataque imprevisto ao Museu Nacional do Bardo, em Tunes, atribuído aos loucos da Daech, matou 22 pessoas entre turistas polacos, espanhóis, franceses, alemães, alguns tunisinos e dois dos malfeitores. O museu onde eu passei manhãs calmas e meditativas, verdadeiro paraíso no centro da cidade, perto do Parlamento, com a magnífica avenida Bourguiba a estender-se ladeada de palmeiras e o brouhaha das suas gentes, não merecia aquele intempestivo assalto até porque era, é, um local de liberdade, de ensinamento e de concórdia. A democracia foi implementada ao fim de anos e anos de regimes autoritários e deve decerto ser por si só no mundo árabe um atentado aos fanatismos islamitas. Com fronteiras com a Argélia e a Líbia, é evidente que é daí que vêm aqueles que a pretendem enfraquecer.   

         - Em Israel ganharam os mesmos. Isto quer dizer que a criação e reconhecimento geral do Estado Palestiniano ficou adiado. Dentro de pouco tempo, prosseguem os ataques, a destruição e a matança de árabes indefesos. Depois surpreendem-se que os fanáticos opostos à suas ideias sejam selvagens.

         - O Banco Central Europeu inaugurado em Frankfurt, foi motivo de grandes e ruidosas manifestações contra os gastos num projecto dispensável quando os Estados abandonaram os povos à sua sorte, reduziram os cuidados na saúde, na educação, transformando-os em zumbis enfraquecidos e desesperados. Quinze a vinte mil pessoas montaram barricadas, incendiaram e destruíram tudo o que encontraram na frente. Toda a gente em desacordo com a sociedade nascida do euro, só eles, os que ganham com isso, persistem em achar que estamos nos melhores dos mundos.


         - Por cá não podemos calar aquele atentado aos mais elementares princípios democráticos que foi a lista dos VIPs contribuintes. Em consequência demitiu-se ontem o director-geral do Fisco, ou antes, deve ter sido convidado ao sacrifício, com a promessa de que, assentada a poeira, logo guindará a outro alto posto. Para a sopa dos pobres não vai e muito menos terá que vender património para sobreviver. A mim porém, o que me surpreende é o facto de esta gente ser tratada com pinças. Então não é verdade que eles estão obrigados a fornecer todos os anos a lista dos seus bens, nesse caso porque razão, como a qualquer contribuinte, não terão os funcionários das Finanças direito ao acesso da sua vida contributiva! Salazar deixou muita semente por cá e a pouco e pouco ela vai germinando de um extremo ao outro do espectro partidário.