quarta-feira, março 25, 2015

Quarta, 25.
Há muitos anos que acompanho o percurso literário de Herberto Helder. Nem de tudo gosto. Agora o que sempre apreciei foi a sua reserva pessoal, o seu timbre único, a sua modéstia nobre, a maneira como se entregou à sua arte sem se servir dela como fazem hoje as centenas de “escritores” que de repente invadiram o mercado com um produto aldrabado depressa apodrecido exalando um cheiro nauseabundo nas bancas dos alfarrabistas de becos. Conheci-o (sem o conhecer) na Brasileira nos tempos do reviralho. Mais tarde, topei-o muitas vezes numa esplanada das avenidas novas, sempre só, vestido do mistério das pessoas que escolheram a solidão para melhor aprofundarem o enigma da existência. Uma pessoa só é de si um mundo fabuloso, um livro em paráfrases e anamneses que nos atira e retrai. Quando nela habita um poeta é a transfiguração num ente superior que plana nas alturas sublimes onde só a poesia reconhece os seus cultores.

         - Como Oscar Wilde que não resisto de trazer ao meu convívio este fragmento da carta que ele escreveu da prisão ao seu amigo Adey: Je reconnais que la perspective d´un autre hiver en prison me remplit d´effroi. Il faut se lever bien avant l´aurore et s´activer dans la sombre cellule froide á la lueur des becs de gaz. Il semble que seule la tristesse puisse filtrer à travers la petit fenêtre à barreaux et les journées se passent souvent sans qu´on ait pris une seule bouffée d´air pur, des journées où l´on sufoque, des journées qui n´en finissent pas dans leur lúgubre monotonie lourde d´apathie ou de désespoir.

         - A pouco e pouco vão-se conhecendo mais pormenores da tragédia ocorrida ontem em França com o avião da Germanwings. Os destroços que as equipas da polícia descobriram nos vales escavados da montanha, dão a imagem de uma impulsão. O que resta do choque a 1.500 metros de altitude, são fragmentos minúsculos disto e daquilo distribuídos por vários hectares – tal o impacto do aparelho no solo. Sabe-se que seguiam a bordo pessoas de nacionalidade espanhola, francesa e turca. Entre elas um grupo de dezasseis adolescentes de 14 e 15 anos de uma escola alemã que tinha ido a Espanha divertir-se na companhia de dois professores. O rei de Espanha que começava uma visita oficial a França na altura em que o desastre foi conhecido, abandonou o país e regressou a Madrid.

         - Um frio glacial instalou-se de novo com a ajuda do vento que salmodia sem descanso. Se isto assim continua, vou ter de voltar a acender as lareiras. Estamos na Primavera, mas é o Inverno que não nos larga. Toda a manhã sentado à minha mesa de trabalho com o calorífero aceso. Ontem a Alice com quem devia estar esta semana em Caldas da Rainha, telefonou a dizer que não fosse porque os dias estão muito desagradáveis por lá “como não senti no Inverno”. 


         - Frei Hélcio aprendeu depressa os prazeres da vida folgada. Prova disso é o seu apartamento junto à Avenida dos Estados Unidos da América. Ouvi-lo falar é surpreender-se como uma vida pode mudar de um dia para o outro radicalmente. O que subjaz dessa escolha, é um mistério que Deus não gostaria de conhecer.