quarta-feira, dezembro 14, 2022

Quarta, 14.

Disse-me que era a favor da eutanásia “porque tenho direito a morrer quando quiser e assistido”. Apetece dizer: tudo bem, vai morrer longe. Os cuidados paliativos não lhe interessam uma vez impossibilitado de levar a vida que lhe aprouver. Esta filosofia é própria de uma certa esquerda arrivista - BE, partidos pequenotes, alguns pseudo-esquerdistas daqui e dali. Quando lhe disse que fosse ler o que o Partido Comunista expôs sobre o assunto, respondeu-me que quando foi deputado pela CDU já tinha votado contra o PCP e a favor do suicídio assistido. No essencial, a teoria é esta: eu sou proprietário do meu corpo e devo fazer dele o que muito bem entender. Há nesta atitude um egoísmo que assenta no princípio individualista que a sociedade nada têm com a opção final que cada um empreende. Transferindo este primórdio para o colectivo, se cada um vivesse para si, fechado nos seus caprichos, lutando apenas pela sua realização pessoal, não se importando com os outros, que tipo de sociedade teríamos e como poderia a humanidade sobreviver? Justamente, o que o progresso humano conseguiu acima de todos os outros, foi o respeito, a solidariedade, o contributo de todos para o bem comum. Então por que razão impor à sociedade um acto definitivo que o tempo irá transformar em forças terríveis de aniquilamento da condição humana, da ganância, do desespero, do poder e das traições colectivas e individuais?  

Eu tenho imenso respeito pelos suicidas, um profundo amor pelos infelizes que se despedem por inadaptação, fraqueza, solidão. Nem imagino o momento em que põem termo à vida através de acto violento, radical, um tombo no escuro de onde nunca mais emergem. Vem-me à ideia Sócrates, condenado à morte pelos juízes por “corromper a juventude”, embora como no-lo conta Platão em Fédon, a verdadeira razão da sua transgressão reside no facto de ele ter posto em questão a natureza e o direito do poder, a religião, a ideia que no seu tempo havia dos deuses, do mal e da injustiça, etc. Sócrates teve muitas hipóteses de escapar ao veneno que o iria matar, mas recusou porque acreditava na imortalidade da alma. E assim, rodeado dos seus discípulos, continua a falar enquanto o frio, começando pelos pés, invade todo o seu corpo. Morre a expor a sua hermenêutica: a alma conhecerá, enfim, a liberdade. Se conto este episódio é para chamar a atenção que uma coisa é a morte por escolha, baseada em valores religiosos, éticos, filosóficos ou outros, cujos fundamentos se enraízam no mais íntimo de nós, quando saudáveis, com a força da vida ostentada na pujança da nossa lucidez e vontade; outra é a morte decidida por uns quantos algozes, reunidos em nome do povo, que para tal não lhes deu especificamente poder nem está inscrito em nenhum programa partidário ou de governo. Por outro lado, para mim que sou crente, e decerto para a maioria dos portugueses educados na doutrina social da Igreja, a vida é de entre os atributos divinos, o mais sagrado. Desde a Escola de Milet (env. 600 Av, J.C.) até praticamente aos modernos filósofos - à excepção de Karl Marx que achava a religião o ópio do povo -, e mesmo no período Positivista de Auguste Comte em que o nosso Almeida Garrett embarcou, diga-se de passagem -, todos se mostraram, como direi, profundamente inclinados à ideia do Salut, isto é, o que está depois da morte. Kant dizia: “É-nos permitido esperar que Deus exista.” E Leibniz, o homem do cálculo diferencial, foi mais longe: “De momento que Deus é possível, Ele existe necessariamente.” 

Porque se nenhum deles conseguiu provar a não existência de Deus, muitos pela argúcia das suas mentes poderosas, com sacrifício e pondo em causa as suas teses filosóficas, também não ousaram contestar a sua existência. Eu surpreendo-me profundamente com o nascimento de um ser humano, chegado daquela terra abençoada que é o corpo da mulher, onde tudo começa, do júbilo ao advento triste da partida. Todo o circuito de uma vida é tão belo, tão fascinante, tão misterioso, que resumi-lo por decreto à morte ainda que assistida, é um crime que todos devemos impedir. Como pode meia dúzia de deputados, na sua maioria incultos, que ali estão ao serviço dos partidos, sem a mínima ideia do que foram dois séculos manchados do sangue dos mártires que pregaram o Amor contra a barbárie, do próprio destino da do filho de Deus morto na cruz, pregado, insultado, cuspido, decidir do destino final dos nossos irmãos, quando a ciência hoje oferece-nos um fim sem nenhum sofrimento e rodeado dos seus mais queridos entes e amigos. 

Para esta gente miserável, a política tout court, isto é, o delírio de alcançar o poder, não passa pela dignificação do homem nem pela compaixão do seu sofrimento. Fazem aprovar leis para as suas bancadas e para as suas tristes vidas condimentadas de coisa nenhuma, vividas na obsessão do assalto ao domínio de um povo sem conhecimentos, abandonado ao obscurantismo que eles diziam combater no antigamente. Daí que não queiram o referendo como princípio e esclarecimento da vontade popular. Tomam entre si as decisões graves, gravíssima neste caso, do destino humano e do seu fim. Não lhes acode que a verdadeira vida, o autêntico facto, reside no que está para lá desta passagem, nesse mundo que iremos conhecer muito pouco preparados para a descoberta, onde seremos confrontados com o rumo que demos à nossa vida terrena. O que há de mais imperioso, válido, digno é o que começa depois da morte. É para isso que nos devemos preparar, continuando a amar a existência que nos foi dada como dádiva maior de toda a criação.  

Como a língua número um dos povos subdesenvolvidos é o inglês (só depois vem a língua materna), convoco os meus leitores a irem à porta da Assembleia da República gritar: I have a strong long desire to live forever! I have a strong long desire to live forever!