quarta-feira, novembro 02, 2022

Quarta, 2 de Novembro.

Ontem fomos Virgílio, João, Sérgio e eu a Sintra em busca do brocante que possui meia dúzia de peças do nosso escultor. Chegados a Terrugem (nome horroroso!) bifurcámos à direita e à esquerda, perdidos numa vasta zona desarrumada do ponto de vista arquitectónico, nem campo nem vila, feia e mal plantada, onde por fim demos com o bricabraque. Logo à entrada, no meio do entulho que não deixava ver o chão da loja, estavam as esculturas em gesso do nosso ilustre artista. Virgílio surpreende-se ao ver os seus trabalhos assim tratados, mas numa rápida e lúcida observação, distancia-se deles, refuta outros que lhe eram atribuídos, extasia-se com dois ou três, apela à memória para os reconstituir e por fim, bichanando-me ao ouvido, diz: “Se tivesse dinheiro, comprava isto tudo para destruir.” Na realidade, vistas fora das fotografias que o proprietário do estabelecimento nos havia enviado a João e a mim, as obras pareciam pertencer a um mundo outro, usado pelo artista como trampolim para voos que ancoraram na sua consistente e estruturalmente sólida capacidade criativa. Pareciam esculturas, como diz Jorge Martins “subtractivas”, isto é, algo que se vai devastando até chegar à obra enquanto sobra do pedaço de nada de onde, bem vistas as coisas, provém o veio adâmico. Ao olhá-las pensei tratar-se de ensaios, de momentos tocados pela embriaguez, quando o escultor se deteve a encher o tempo da ironia dos grandes ante a pequenez do talento que a natureza apesar de tudo não deixa submeter. Seja como for, para mim, diante daquelas formas talhadas em gesso, esmoreceu o impulso de adquirir qualquer uma. Percebia a raiva surda do artista, mas fui-lhe dizendo que sem aquele esforço ele não tinha atingido a craveira que todos lhe reconhecem. A verdade é que ninguém nasce génio e mesmo aqueles que nós pensamos terem nascido com esse dom, é com labor constante, entrega solitária, desvio de preconceitos, normas, obsessões, confissões, vazios, desesperos e solidão que assomam, quantas vezes por breves instantes, à perfeição sublime da arte. Que até quando atinge a unanimidade, continua mergulhada no subjectivismo que a engrandece, afinal, defronte de si mesma. João fora arrastado pela minha visão dos factos e pelo alheamento do escultor que intermitentemente olhava o que jazia pelo chão ou sobre peanhas inconstantes, como objectos que não lhe mereciam nenhum valor. Todavia, o que enchera o olho de Corregedor, fora uma escultura datada que narrava a eloquência de um ávido banqueiro subjugado ao poder que o dinheiro possui como forma de humilhação sobre os rústicos que diante dele se ajoelham (fez-me lembrar aquele banqueiro, durante uma reunião com os seus pares, na altura em que o povo deu a vitória a Miterrand e a economia ia dar uma volta: “Que vão eles fazer do meu pobre dinheiro?). Era, portanto, uma escultura de carácter político. João Corregedor já se via a fazer eloquentes sermões, apontando para o ícone (como falam os papalvos nas televisões), saído das mãos do camarada (na altura) e amigo e acabou por sair de mãos vazias e carteira intacta. 

         - Directamente para um modesto restaurante de terceira escolha, no repulsivo nome de Terrugem, na rua principal. Foi, por assim dizer, a recompensa merecida por termos sobrevivido à tentação de termos algo do nosso amigo, onde só a assinatura nos podia valer se fôssemos contrabandistas de arte. Não foi tanto o que se comeu, por sinal nada mau, mas o convívio animado que reinou na nossa mesa e atraiu as atenções do grupo de raparigas brasileiras que o dirigiam. O repasto arrastou-se pela tarde soalheira derramada sobre as nossas vidas à beira do desespero dos últimos dias de chuva diluviana. Regressei ao meu convento já a noite se espapaçava pelo campo viçoso.  

         - Uma avalanche humana saiu à rua para festejar a moda americana do halloween. Ao todo seriam 100 mil pessoas na sua maioria jovens, que se viram subitamente amachucados quando tentavam descer uma rua estreita no centro de Saul. O resultado foi a morte de mais de 150 mortos e uns milhares de feridos. Quase todos os chefes de Estado apresentaram pêsames ao presidente da Coreia do Sul, todos menos o ditador horrendo do Norte. 

         - Há um quadro que nos aperta o coração com as centenas de timorenses, confiantes nas palavras de acolhimento proferidas por Marcelo Rebelo de Sousa quando recentemente visitou o país, vieram acoitar-se entre nós depois de terem entregado fortunas a criminosos para a viagem. Estão por todo o lado, nas ruas das cidades alentejanas, nas praças lisboetas, passam fome e dormem mal. O Estado pouco ou nada tem feito para os tirar daquela insustentável e degradante existência.  

         - Quando a extrema-direita e a extrema-esquerda se encontram, o desastre não pode ser outro que o degradante e perigoso espectáculo para a democracia que se vive no Brasil com a vitória de Lula e a derrota de Bolsonaro.