quinta-feira, novembro 24, 2022

Quinta, 24. 

Duas ou três coisas sobre o romance de Francisco José Viegas, Melancholia. Descobri o autor há dois anos com o memorável livro A Luz de Pequim, seguindo-se Um Céu Demasiado Azul que não me entusiasmou como o anterior e agora este saído há três semanas que confirmou para mim o excelente escritor que temos a sorte de ter. Há trinta anos que Viegas nos narra a história do inspector Jaime Ramos, forma demasiado óbvia de não perder de vista o país que somos, que fomos sendo, pós-25 de Abril. Nesta última história do mestre do crime, Jaime Ramos, entra por assim dizer na decadência, na melancolia do fim de carreira e de vida, e tudo se passa em torno de um ambiente que o autor conhece como ninguém – o das Letras e dos escritores. Tema que nunca havia abordado (penso) nos quinze romances precedentes, mas onde o encontramos como peixe na água sendo editor. A nossa sociedade cultural está inteira em páginas que descobrem o assassinato da escritora de dois títulos publicados, Cristina Pinho Ferraz, mas igualmente no mundo de intriga, inveja, vaidade, espectáculo, convencimento e mitomania que são os célebres Encontros de Escrita, onde o inspector cai de paraquedas. Ali nascem e morrem, aparecem e desaparecem muitos candidatos ao Nobel. “Literatura é vingança ou confissão, ensimesmamento. O problema é que a maledicência só é arte passados muitos anos, muitos prémios literários depois, muita memória acumulada, muito esquecimento controlado.” E depois: “Tirando o cinema, a literatura é a mais malévola das artes, porque se podem sugerir coisas impressionantes em cada personagem, e cada personagem pode ser identificada (pág. 176).” É isso que Francisco Viegas faz. Conhecendo o meio como poucos, lúcido e inteligente como é, dá-nos um fresco impressionante de certos génios sem nunca citar nomes, mas insinuando-os através de imagens de recorte preciso, de sombras e vanidades. Ao contrário dos livros policiais do género, Viegas favorece o lado psicológico, humano, sensível, não só do polícia na pré-reforma, como das personagens que o inspector vai encontrando ao longo da história de Melancholia. Por vezes, temos a sensação que o pano de fundo – o corpo de Cristina Pinho Feraz encontrado enterrado num jardim, dividido em três sacos – é apenas leit-motiv para o autor nos mostrar o seu lado imponente de narrador, de ficcionista, numa paisagem nortenha de onde é natural, com os elementos geográficos, físicos e arquitectónicos que integram ou submergem o clima soturno, percorrido por um inspector que marcou a história do crime, antes das modernas tecnologias virem enquadrar e ser usadas por novos agentes policiais, de ser substituído por Olívia, mulher de múltiplos amores, talvez demasiado dependentes das caranguejolas – telemóveis, computadores, videochamadas -, em desprimor da psicologia criminal, do pormenor conquistado no terreno, da obsessão da verdade, conforme com o espírito da lei e da justiça. 

A melancolia é muitas vezes um estado criativo e de equilíbrio no dizer de Joke J. Hemmsen. Todavia, para Jaime Ramos é uma despedida de vida dolorosa, um estado depressivo difícil de substituir após uma existência a perseguir malfeitores, a lutar pela verdade, num país de faz-de-conta, onde o crime de colarinho branco impera. O inspector vagabundeia, finge ser ainda o elemento de referência numa corporação que o 25 de Abril veio computorizar, instalar novas hierarquias, afastar os mais velhos polícias para os substituir por quadros pomposos perfeitamente inoperantes. Jaime Ramos olha para as novas condições de trabalho com certa altivez de velho que não se deixa impressionar por modernidades sem consistência nem objectivo contributo para o esclarecimento da verdade. Segue na sombra, a apalpar a acção, a estudar as personagens do ponto de vista social e psicológico, mas já sem aquele entusiasmo, aquela força redentora que o distingue dos demais. Há como que dois planos romanescos que seguem em paralelo: o destino do inspector Jaime Ramos e o da morte da escritora Cristina Pinho Ferraz. Sem esquecer o país onde os factos aconteceram e é tanto ou mais importante que o delito em si mesmo. Viegas não se esquece nunca que as circunstâncias fazem o crime. 

Depois há um facto curioso que me agradou especialmente: a presença discreta do narrador. Ele entra e sai de cena com parcimónia, como se fosse o maestro a dirigir uma orquestra de vários naipes. Exemplos não faltam : “Mas a pergunta era essa. O que levara Samuel Ribeiro Ferraz, depois de saber que ia morrer, em 2012, a fazer aquelas viagens à Turquia, mas também a França e a Espanha?” seguida desta conclusão: “Já lá vamos.” (pág. 306) São na realidade muitos os pontos que ficam suspensos de capítulo para capítulo, comigo de atalaia à construção do texto, tentando ver se algo fica suspenso a merecer o respectivo desfecho. Qual quê! Francisco José Viegas dinamiza a história com maestria e é um prazer, uma felicidade ler este Melancholia porque tudo nele é arte na sua expressão mais contida, mais bela, mais humana, na sua forma de contar, no humor que nos surpreende, na poesia que perpassa todo o livro e é parte integrante da melancolia que acompanha Jaime ramos e nos suspende a respiração, como nesta passagem onde o narrador se dirige à personagem: “Jaime Ramos, hoje sentes a música composta pelos anjos do passado, pelos anjos da melancolia, por um temperamento pastoril que desconhecias, e isso não te interessa, não te convém, porque tens um crime fugidio entre mãos e, muito embora já tenhas desenhado a saída do labirinto, precisas de um pequeno empurram do destino. Ulmeiros, aquilo são ulmeiros, os ulmeiros que atraem insectos quando vem a luz do dia. E isso não te deixa descansado porque estás clandestino e foste proibido de investigar fosse o que fosse. É por isso que gostas desta hora, quando há feixes de luz alaranjada, e depois avermelhada, que te devolve uma parte da tua pobre imaginação. E então, levantando-se, voltou para o interior da casa, onde tinha coisas para folhear e desta vez não era no ecrã do telemóvel, o que o deixava satisfeito (pág. 287-288)”. 

A sensação com que fiquei ao fechar o livro, está inteira na última página “Agradecimentos”. O autor dirigindo-se a Magda (suponho sua companheira de vida), diz: “Finalmente, à Magda, que assistiu a tudo e conhece Jaime Ramos muito melhor do que eu.” Francisco José Viegas e o seu alter ego Jaime Ramos, puseram (provavelmente) fim a esta longa história de trinta anos. 

Um livro a ler e a reler. 

Porto Editora, 332 páginas