terça-feira, novembro 22, 2022

Terça, 22. 

Vazio. Solidão. Sensação do fim. A escrita, a criação, a arte abandonaram-me. Continuo  a pressenti-las em mim, mas como coisa do passado, aceno de muito longe, luz que se esvai para todo o sempre. Vou ter que pedir ajuda a Julien Green, reler o terceiro volume do diário e fazer da sua leitura, como tantas vezes me aconteceu, rampa de lançamento para dias mais abertos à esperança e ao trabalho exigente e quotidiano da criação. 

         - Ontem fui com o Corregedor ver a Teresa Magalhães ao hospital da CUF que ali foi internada devido a queda na escada do prédio onde vive, em frente à Brasileira, de que resultaram fracturas de costela e bacia. Pobre Teresa! Quem a viu a ditar a moda entre os  anos 80 e 90, bela e janota, livre e independente e a vê no leito do hospital enroscada sobre si própria, tolhida de dores! Eu costumo dizer que os médicos tratam-nos de doenças, mas são as quedas em casa que nos levam deste mundo. 

         - Arrastei o João para o almoço no Vitta Roma. À hora a que chegámos, sendo o restaurante barato e onde vai toda a espécie de gente, de médicos a velhas olé olé, de trabalhadores a reformados, encontrámos o estabelecimento à cunha. João fica doido com aglomerações, barulho e gente de meia-tigela. Vai daí rogou pragas e coriscos e disse-me, peremptório, que não o convidasse mais para ali ir. Depois do almoço, como ele é muito poupado, fomos de metro até ao Cais do Sodré e dali no eléctrico até ao hospital. Na Avenida de Roma, parecia um cura de aldeia, distribuindo esmola aos pobres que encontra nos passeios, condoído com este e aquele que conhece a sua história de vida e acha que tem de falar a sicrano e a beltrano de modo a melhor a sua triste existência. 

         - Mesmo comigo. Acontece que domingo andei a roçar a erva sem cobrir a cabeça sabendo de antemão que o sol nesta época do ano é perigoso. Resultado: comecei com tosse seca mais irritante que perigosa. Logo ele se alarmou e à mesa fartou-se de me dizer que fosse ver isto, que não gostava de me ver, que tinha os olhos assim e assado. Não contente, chegado a casa, falou com a Marília que me telefonou (provavelmente a seu pedido) a saber como estava, se precisava de alguma coisa, que fosse ao médico porque o marido estava inquieto. 

         - À noite, estando à lareira a ver um excelente programa sobre a rainha Elizabete da Bélgica, telefona-me o Werner da Suíça. Quase uma hora ao telemóvel a recordarmos outros tempos, quando nos conhecemos na adolescência, numa época em que eu ia para Puerto de Nava Cerrada fazer sky (ou lá o que isso fosse), não adivinhando eu o pintor que ele viria a ser. Disse-me que a inflação no seu país ronda os 3 por cento, e no adiantado da conversa que os países do euro, iriam pagar muito caro as esmolas que a União tem vindo a distribuir aos povos sob o seu domínio. É capaz de ter razão. De todo o modo, durante a epidemia, foi acertado adquirir as vacinas em conjunto de modo a usufruirmos gratuitamente das mesmas.   

         - Durante a conversa, ouço um clique vindo da lareira e prestando atenção noto que o vidro rasgou de alto a baixo. Hoje perguntei a um técnico quanto custa um novo: duzentos e cinquenta euros.  Não é tão agradável viver no campo?!  

          - E eis como as palavras são como as cerejas: começa-se hesitante e acaba-se num caudal imprevisto.