quarta-feira, agosto 24, 2022

Quarta, 24.

Ao livro de Valter Hugo Mãe, O Apocalipse dos Trabalhadores, julgo que lhe falta qualquer coisa para que o todo se encontre em unidade e consistência. As personagens são excessivas, transbordam das suas naturezas especificas e não convencem por isso. Por exemplo, Maria da Graça, mulher de limpeza em casa de um velho com recursos financeiros, tem por vezes rasgos metafísicos que não são característicos de pessoas da sua condição; assim como a sua amiga Quitéria, sensual a seu modo, amante de rapazes e apaixonada por um ucraniano, sendo mais convincente, não deixa, contudo, de se ultrapassar em linguagem e modo de ser, recentrando em si elementos dispersos de uma personalidade atávica que balança entre o respeito e o dar-se ao respeito. O livro é a história banal destas duas personagens, mas é, quer-me parecer, sobretudo a história do seu criador. Valter Hugo Mãe descobriu-se se calhar sem querer... Há demasiados episódios que nos levam a ele, embora eu não ignore que os romancistas servem-se da ficção para se estenderem ao comprido através daquelas e daqueles que retratam. Pelo autor vim a saber um pouco mais sobre ucranianos e russos que entram na história. Estes seres alvos, espadaúdos que vieram para Portugal trabalhar nas obras e por isso desenvolveram físicos aliciantes que as portuguesas gordas e baixas apreciam, não fora um pequeno-grande se não: aqueles corpos, e um sexo tão minúsculo... Sem falar na grafia, continuação da de Saramago, onde ao longo das 230 páginas, Deus e os nomes das terras, personagens, lugares e coisas, aparecem ao mesmo nível, isto é, sem direito à diferença que por natureza caracteriza todo o ser humano, os sítios, os deuses, etc. A própria respiração da escrita, é ao leitor que é confiada. É ele que põe os parágrafos, a entonação, os silêncios. A escrita limita-se a correr ao longo das linhas, o leitor vai atrás. Outra característica da moderna literatura portuguesa, talvez porque ajude a vender, é a utilização da linguagem sexual ordinária, pura e dura, que tenho dificuldade em aceitar; não por ser puritano, mas por achar que a arte é suficientemente abastecida de rigor, ofício e criatividade e no seguimento talento que tudo diz através dos sentimentos dispersos, da poesia ou do lirismo. O leitor compreende sem que seja agredido pela linguagem  vulgar. Não quero dizer com isto que se trata de um mau livro. Valter Hugo Mãe é dos melhores da sua geração. Contudo, quem como eu o descobre através do Homens Imprudentemente Poéticos, onde tudo é contido, exposto, vivido na densidade dos corações, em cujo fervor entrou o encantamento da poesia e o desenho lúcido das personagens, não deixa de sentir um certo desencanto. Aliás, na introdução, um sujeito que não conheço, quase me obrigou a pôr o romance de lado. O charabia literato é tal, que fiz marcha atrás. Felizmente venci as apreensões e avancei para fazer o meu próprio juízo. Ele aqui fica.  

         - Enfim, consegui esta tarde arranjar tempo para 250 metros de natação. Assim que o senhor Vítor saiu e o Sérgio e a Maria do Céu, fechei o portão, despi-me e mergulhei com redobrado prazer. Ontem, aqui, foi insuportável pôr o nariz fora de casa. Um calor abafado, terrível, seco. Três carros de lenha ficaram guardados debaixo do telheiro.