quinta-feira, julho 23, 2020

Quinta, 23.
Oh, não esqueço e estou de joelhos a agradecer à plêiade de políticos que não tem equiparação com nenhuns outros do passado, devido ao extraordinário esforço que fizeram – noites sem dormir, partindo pedra horas a fio, quatro dias de gargantas secas e fora o que nunca saberemos – por ter encontrado solução para o trote da UE, unida como nunca em torno do projecto económico que só tem em conta os cidadãos, coitadinhos. O montante inicial de 500 mil milhões de euros, perdão, 390 milhões que foi quanto se conseguiu, desculpem lá esta coisinha, e ficou a dever-se àqueles países sovinas, frugais de vida embora ricos, mas que ainda assim, pobres como somos estamos agradecidos, e vamos poder viver por três anos à tripa-forra, com cada qual a rapar o tacho já de si gasto de tanto rapinanço. A tónica foi esta. Ninguém explica a este infeliz povo, quanto nos vai custar a misericordiosa ajuda; informa que o dinheiro chega por tranches negociadas e, portanto, pelo caminho recusadas; que o período pode ir até dez anos e nas entrelinhas há um monstro que não se ergue da letargia política em que a Europa do euro entrou há anos. Mais. Se dúvidas houvesse das divisões profundas no seio dos 27 países da (des)União, este programa de ataque ao coronavírus, é a vacina que não consegue, mais cedo ou mais tarde, criar anticorpos. A morte anunciada da União Europeia é um facto. Felizmente os ingleses piraram-se a tempo.  

         - Almocei na Adega da Mó. Primeiro, estava eu só, depois vieram mais dois comensais e assim o restaurante saldou os almoços na esperança de ter jantares mais abastecidos. Deste modo vai a cidade: pouca gente pelo Rossio, lojas vazias, quase ninguém nos transportes. Comprei uma camisa de linho na Maximo Dutti e sou recebido como o rei de Espanha (o antigo) sendo o único cliente na manhã mais fresca da semana. Tenho ao meu serviço quatro funcionários - uma rapariga e três rapazes - com excelente bom aspecto e sorriso insinuante. Posso dançar serpenteando-me por entre balcões e mesas, perfumar-me e vestir-me de azul, cinzento ou grená que tudo me é permitido e o que faço recebe aplausos e risos Pepsodent.  Um pouco mais de mundo no Corte Inglês onde entrei para comprar um suplemento que me reponha a calma que a escrita exige. Todavia, ao atravessar o armazém, lojas vazias, funcionários como polícias à entrada vendo passar os clientes que nem para eles olham. A indústria e o comércio espera por melhores dias que tardam em chegar. A China rebola-se de contentamento.

         - Comecei o dia aspirando manualmente a piscina. Trabalho de força e pelo menos três quartos de hora de ocupação. Quando batem as dez da manhã, estou como se tivesse em cima das costas oito longas horas de escravo. Mas falta ainda regar, puxar mangueiras, dar de comer aos gatos, e passo. Quando me abanco para atacar o romance, respiro de alívio porque tudo então se harmoniza: a solidão, a escolha deste reduto isolado para viver, o merecimento do silêncio que aqui é verdadeiramente de oiro, as horas corridas de amplos murmúrios que me enchem de alegria e me submergem de tormentos, le nec plus ultra que dá sentido à existência.