Quinta,
22.
O
Verão, este que nos afaga, traz-me as procissões que me levam de aldeia em
aldeia, no andor das recordações felizes, aspergidas da água benta que o meu
temperamento unge. Não me lembro de um estio assim tão adaptado à minha
natureza, parecendo ser feito à medida do formato físico e psicológico,
sedimentado nas características e na forma do meu corpo, onde cabe inteiro o
meu espírito, tão pouco inclinado às disposições do sol, da chuva e do vento. Acordo
levantado das nuvens da noite e varro o vinhedo com os olhos como quem lava o rosto
e desço para tomar o pequeno-almoço, descalço, em boxers, t-shirt alva. Enfio
umas alparcatas para regar e, entretanto, chega a Piedade com um saco de
tomate, feijão verde e figos. Enquanto ela se ocupa do salão, eu tomo café no
pátio e leio a aristocrata Virgina Woolf. “Não sei como tem olhos para ler
tanto”, diz-me ela eternamente surpreendida. Mas lá fora, sob o disfarce fresco
da manhã luminosa, transparecida do silêncio religioso que é a voz do Criador,
sinto-me bem banhado do verde de mil tons que me abraça. O cuco vem logo de
seguida saudar-me com o seu canto matinal e tudo à minha volta imiscui-se da
ternura do instante alastrado ao resto da manhã que começa a aquecer sem ferir. A
Piedade está na cozinha, a tábua de
engomar aberta, pronta para o gesto que me faz descer à adolescência das tardes
desimpedidas ao remanso murmúrio do ferro transformando cada peça num objecto
de arte tocado pela magia do calor. Black salta para os meus joelhos, mas fica
pouco tempo alertado por um qualquer ruído que escapa aos meus ouvidos humanos.
Perto do meio-dia, desço ao fundo do portão com uma cesta e a Piedade, para lhe
devolver em maçãs reineta e marmelos os frutos que ela teve a amabilidade de
trazer. O cabaz era grande, mas não chegou a despejar uma árvore. Agora (16,17)
vou nadar meia-hora e continuar a ler estendido ao sol, a nudez do meu corpo
devolvida à natureza, ao azul do firmamento, ao burburinho das folhas das árvores
tocadas pela brisa, ao alento do vento varrendo todas as dores interiores e
fazendo renascer dos silêncios o homem novo que este verão purifica todos os
dias de castigos e mágoas.