Domingo,
4.
Ora
bem de que vou eu falar hoje não querendo entrar na chafurdice da política.
Acordei à seis da manhã com a preocupação de fazer as grandes regas em conta
que me permite o quadro bi-horário. Andei nisso umas duas horas e meia. Antes
tomei o pequeno-almoço (duas fatias de pão de mistura com manteiga e compota de
damasco, uma laranja tudo produção da casa). Segui limpando o loureiro que se
fez enorme e estando perto da casa pode tornar-se perigoso. Trabalho concluído
com o arrastar dos grandes trocos depois de cortados para a lareira até ao
fundo da quinta de modo a poder queimá-los no inverno. De seguida leitura de trinta páginas do diário
de Virgínia Woolf. Agora, isto é, desde há quinze minutos (são 10,36), estou no
Café da Casa com o intuito de avançar na correcção de O Juiz Apostolatos, esquecido como tragédia indizível há cinco
meses! A depressão que atravessei de Abril a Junho deixou-me no limite da minha
crença e das minhas capacidades intelectuais. Escrever é como viver num campo
de concentração. Exige de nós inteligência, exclusividade, inquietação
constante. Ficamos dependentes das personagens, do conteúdo, do movimento
homocêntrico, a vida circulando em torno do trabalho que só não é de escravo
porque o amamos, não podemos viver sem ele, somos arrastados no turbilhão do
entusiasmo e da incredulidade, noite e dia cruzando longas horas meditabundas.
O sopro é instável, a solidão é medonha, a mente cansada lassa, à nossa volta
surge o vazio, o desânimo, a vontade de partir para um qualquer lugar de onde
não regressaremos mais... Gostava de ser como este grupo de maduras ornamentadas
que está aqui ao lado. Estão há tanto tempo compenetradas a falar de
vulgaridades, de coisas que nem a elas interessarão, mas cobrem o convívio de
uma realidade prática que as abastece de felicidade. Elas tomam com as suas
vozes todo o café, estão aqui como na saleta minúscula dos seus apartamentos,
os mesmos modos, os mesmos sorrisos, os mesmos gestos gratuitos. Os telemóveis
não param de tocar, mas elas encostam-nos ao ouvido como se fossem um realejo
cheio de pedras preciosas. Mas o que sai deles é do mesmo teor medíocre que
enche estes momentos onde as cinco estão no usufruto dos sentidos que só o
domingo traz. A porta está nas suas costas e eu vejo o movimento na Luísa Tody
como qualquer coisa de abstrato que não coincide com este instante onde estou
compenetrado (ou devia estar) em rever o romance. A manhã que entra aqui dentro
pela porta rasgada, é de algum modo diáfana, atravessando o tempo que aqui
corre na indiferença do que dizem as mulheres e na minha preocupação com o
livro. Tenho o Zeca Afonso com aqueles óculos grandes e um ligeiro sorriso de
desconfiança na frente. Foi aqui que ele viveu e a cidade rende-lhe homenagem
com esta série de fotografias a preto e branco e frases condignas ao seu
talento. E de súbito as suas músicas inundam-me os ouvidos. Trauteio-as no
interior de mim, desistindo do romance, as tagarelas das mulheres falando alto
como os portugueses sem educação que em qualquer lugar onde desembarquem
tomam-no como sendo o sítio da sua familiaridade caseira. Vou voltar para casa,
mais um dia negligenciado à escrita. Depois do almoço vou a Lisboa ver um
filme. E deste modo salvo a presença diarista com observações de interesse nenhum.