domingo, agosto 04, 2019

Domingo, 4.

Ora bem de que vou eu falar hoje não querendo entrar na chafurdice da política. Acordei à seis da manhã com a preocupação de fazer as grandes regas em conta que me permite o quadro bi-horário. Andei nisso umas duas horas e meia. Antes tomei o pequeno-almoço (duas fatias de pão de mistura com manteiga e compota de damasco, uma laranja tudo produção da casa). Segui limpando o loureiro que se fez enorme e estando perto da casa pode tornar-se perigoso. Trabalho concluído com o arrastar dos grandes trocos depois de cortados para a lareira até ao fundo da quinta de modo a poder queimá-los no inverno.  De seguida leitura de trinta páginas do diário de Virgínia Woolf. Agora, isto é, desde há quinze minutos (são 10,36), estou no Café da Casa com o intuito de avançar na correcção de O Juiz Apostolatos, esquecido como tragédia indizível há cinco meses! A depressão que atravessei de Abril a Junho deixou-me no limite da minha crença e das minhas capacidades intelectuais. Escrever é como viver num campo de concentração. Exige de nós inteligência, exclusividade, inquietação constante. Ficamos dependentes das personagens, do conteúdo, do movimento homocêntrico, a vida circulando em torno do trabalho que só não é de escravo porque o amamos, não podemos viver sem ele, somos arrastados no turbilhão do entusiasmo e da incredulidade, noite e dia cruzando longas horas meditabundas. O sopro é instável, a solidão é medonha, a mente cansada lassa, à nossa volta surge o vazio, o desânimo, a vontade de partir para um qualquer lugar de onde não regressaremos mais... Gostava de ser como este grupo de maduras ornamentadas que está aqui ao lado. Estão há tanto tempo compenetradas a falar de vulgaridades, de coisas que nem a elas interessarão, mas cobrem o convívio de uma realidade prática que as abastece de felicidade. Elas tomam com as suas vozes todo o café, estão aqui como na saleta minúscula dos seus apartamentos, os mesmos modos, os mesmos sorrisos, os mesmos gestos gratuitos. Os telemóveis não param de tocar, mas elas encostam-nos ao ouvido como se fossem um realejo cheio de pedras preciosas. Mas o que sai deles é do mesmo teor medíocre que enche estes momentos onde as cinco estão no usufruto dos sentidos que só o domingo traz. A porta está nas suas costas e eu vejo o movimento na Luísa Tody como qualquer coisa de abstrato que não coincide com este instante onde estou compenetrado (ou devia estar) em rever o romance. A manhã que entra aqui dentro pela porta rasgada, é de algum modo diáfana, atravessando o tempo que aqui corre na indiferença do que dizem as mulheres e na minha preocupação com o livro. Tenho o Zeca Afonso com aqueles óculos grandes e um ligeiro sorriso de desconfiança na frente. Foi aqui que ele viveu e a cidade rende-lhe homenagem com esta série de fotografias a preto e branco e frases condignas ao seu talento. E de súbito as suas músicas inundam-me os ouvidos. Trauteio-as no interior de mim, desistindo do romance, as tagarelas das mulheres falando alto como os portugueses sem educação que em qualquer lugar onde desembarquem tomam-no como sendo o sítio da sua familiaridade caseira. Vou voltar para casa, mais um dia negligenciado à escrita. Depois do almoço vou a Lisboa ver um filme. E deste modo salvo a presença diarista com observações de interesse nenhum.