Quinta,
1 de Novembro.
A
dada altura o cérebro gripou. Deu-me então para ir dar uma volta pela Defense.
Desde que o Arco foi inaugurado que eu lá não punha os pés. Quando da abertura
fui lá com a Annie nessa altura com todas as benesses de maire-adjoint da mairie. O que encontrei hoje é de fugir. Aquilo
não tem nada a ver com nada, assemelhando-se a uma cópia de mau gosto dos buildings americanos. Quando cheguei um
vento louco atravessava os espaços e uivava aos nossos ouvidos com a garra de
lobos enfurecidos. A aridez, a cor cinzentona dos edifícios, a sensação de
desconforto, de vazio, de gélido, de desumano
tolha-nos os sentidos. Ao pé daqueles monstros de aço e vidro, parecemos
moscas plasmadas, insectos perdidos sem rumo. Um odor horroroso a dinheiro, a
podridão, a escravidão espraia-se. Todas as grandes empresas mundiais têm lá
pouso, e parece que além delas há quem viva morando naquelas caixas sem beleza.
Torres inteiras são máquinas de fazer dinheiro, os centros comerciais e as
lojas atropelam-se. Um batalhão de escravos vem de longes paragens todas as
manhãs para marcar o ponto e sentar-se em escritórios empilhados com cem metros
de altura; saem em bando pelas seis rumo aos seus lares decerto mais
acolhedores. A zona fica então entregue aos larápios, aos assassinos, aos
guardas-nocturnos. Ali é Paris, mas Paris que não conhece o legado do século
das Luzes: Liberdade, Igualdade, Fraternidade.
Valha-nos o espelho d´água... |
.... e aqui as árvores |
- Para me recompor, nada melhor que
voltar aos lugares que são a matriz identitária da cidade. Assim desci à Rive
Droite para almoçar com as minhas queridas anciãs que me esperavam no último
andar do BHV. Comi a seu lado, com os tectos de Paris por paisagem e o
sentimento de escutar os seus pensamentos, até os seus balbuciamentos, quando
alheias ao tumulto do restaurante, os rostos vincados do pressentimento do fim
iminente, derramam mágoas e abandonos, solidão e memórias, sobre os fins de
tarde do resto das suas vidas. Tendo depositado um beijo em cada uma, parti a
pé, atravessei o Sena para a Rive Gauche e tomei a direcção do Luxembourg. Chovia,
fazia frio. Para me proteger e recuperar energias, entrei num café e deixei-me
ficar por largo tempo a ver chover. Desci de lá de cima, atravessando a Sorbonne,
para tomar o metro na estação Cluny La Sorbonne de regresso a casa. Belo e
sempre grandioso reencontro com a arquitectura haussemaniana, ainda que não
ignore que o arquitecto de Napoleão III sacudiu os pobres desta zona para
instalar nela os ricos.
- Kiberen (em bretão) onde acabamos de
chegar depois de uma viagem de auto-estrada de seis horas.
- Trouxe comigo o livro de Paul Morand
L´allure de Chanel. É uma recolha de
textos, digamos, ligeiros que o escritor escreveu em datas e períodos
diferentes, mas nem por isso menos interessantes. Morand sabe tocar o leitor, é
um artista de mão solta e cultura sólida. Conhecedor do mundo e dos palhaços
que o habitam, com a independência que o prestigio e o dinheiro lhe deram, pôde
dar-se ao luxo de abanar a sociedade francesa do alto do seu talento de
cronista planando sobre tudo e todos.
- Ontem, tendo encontrado várias
edições da obra de Klaus Mann, resisti-lhes e optei por dois livros de Clara Malraux
que não conheço senão pelas referências que faz o seu marido.
- Em Paris e por toda a França, cenas
de violência contra a Polícia, carros incendiados e assim. Esta revolta e
incitamento a actos de força, foi convocada nas redes sociais – a nova moda
colectiva de fazer frente aos desmandos da autoridade entrincheirada no voto
popular. Para dezassete deste mês, estão previstas manifestações contra o abuso
do Estado em taxar a gasolina e o gasóleo. Chou Chou acautela-te.