sexta-feira, novembro 09, 2018

Sexta, 9.
Esta manhã, sob um sol frouxo, mas radioso, dei uma volta pelos brocantes de Saint-Denis. Que mundo! Livros com muita qualidade a preços entre um e dois euros e toda a sorte de bijutaria, quinquilharia, e artigos vindos das antigas colónias francesas, outros da imigração, numa amálgama de povos que em frente à Basílica se juntam para recordar as suas correspondentes origens. Claro, não podia regressar a casa sem um livro. Desta feita o segundo da trilogia Les Pays Lointains, (cujo último volume li em tempos), encadernado, 890 páginas, pelo preço de... dois euros! 

         - Um pouco mais tarde, demos um salto ao museu Picasso. Uma exposição absolutamente notável sob vários pontos de vista, mostra-nos uma série de trabalhos do Mestre até aqui desconhecidos da maioria dos visitantes. Obras em posse de privilegiados, fotografias da intimidade do artista, o percurso de telas de referência provando que cada obra era objecto de muitos estudos, indecisões e reflexões. Nada parece ter sido feito ao caso, ao correr do pincel, num momento de inspiração. Pelo contrário, nesta mostra, somos impelidos a não aceitar as toneladas de artistas que vieram depois dele, que não sabem desenhar, pensar, executar, montados na ideia que o abstracto é uma forma livre de arte onde cabe tudo e nada e de onde saem os génios emmerdeurs. Um exemplo entre muitos. O quadro Science et Charité de 1897. Para esta concepção notável, Picasso fez nada mais nada menos que oito estudos. Curiosamente, dado o tema e sendo ele catalão, no quarto onde a mulher jaz numa cama, não existe nas paredes nenhum elemento religioso ou antes este é-nos dado pela presença da freira. Para a célebre composição Les Demoiselles d´Avignon, uma sala inteira dá-nos a conhecer o esforço do artista em numerosas tentativas para chegar à perfeição que conhecemos. Ao longo dos cinco andares do edifício, conta-se também a história das relações pessoais e artísticas do pintor com os seus contemporâneos e não só. Assim George Braque com quem inicia o período Cubista, Matisse, Modigliani e outros para trás como Rembrandt. O que também me impressionou muito, foi a sua vida intima. Uma série de fotografias mostram Picasso na privacidade da sua propriedade de Mougins. Cenas familiares de grande beleza com os filhos e a mulher Jacqueline Roque. Este génio, contudo, começou cedo como prova o quadro Homme a la Casquette. Picasso tinha 14 anos quando o pintou. Desde então nunca mais parou. Até à morte levou a vida a trabalhar. E não me venham dizer que foi para enriquecer. Coco Chanel dizia: “Picasso é a tábua de logaritmos”. A verdade é porém esta: Picasso foi sempre mais além, explorou tudo o que havia para explorar, atingiu a plenitude e ao morrer deixou um gigantesco vazio difícil de preencher.

Sciense ey Charité - 1897
Portrait de Dora Maar - 1
La lecture - 1932








A personagem e o génio 


Portrait de Nusch Éluard - 1937

         - Falta-me para terminar o romance escrever umas duas páginas. E, contudo, entrei em derrapagem: um vazio imenso apossou-se de mim, uma sensação de abandono invade-me. Como se tivesse perdido um parente querido, estou num sufoco sem saber o que fazer dos meus dias sem os amigos que comigo têm convivido desde que em 23 de Fevereiro do ano passado nos encontrámos Conheço-me e sei que vou retardar com diversas versões o final. Não tanto por este ser importante para a ligação com o todo, mas porque enquanto vou fazendo vários rascunhos, mantenho-me dentro do nosso ritmo diário de convívio. Somos uma família no verdadeiro e nobre sentido do termo.


         - Outro dia acompanhei o Robert ao Marais de carro. A distância faz-se em pouco mais de quinze minutos, mas nessa tarde devido ao fluxo de trânsito, entre ir e vir, perdemos mais de hora e meia. O peripherique, seja a que horas for, está sempre entupido. É a praga da cidade e dos seus habitantes, os que dentro dela vivem e os que moram nas redondezas. Evidentemente, para mim, foi a descoberta da Paris dos pobres, dos migrantes, dos que vivem com meia-dúzia de tostões. Passei por um bairro onde praticamente só vivem negros, indianos, tailandeses. As lojas oferecem um mundo de serviços e produtos dos seus países, as ruas estão pejadas de homens a comercializar coisas estranhas, decerto muito boas, mas que nada têm a ver com os hábitos parisienses ou europeus. É um mundo vasto dentro de uma casca hexagonal.