Sexta, 9.
Esta
manhã, sob um sol frouxo, mas radioso, dei uma volta pelos brocantes de
Saint-Denis. Que mundo! Livros com muita qualidade a preços entre um e dois
euros e toda a sorte de bijutaria, quinquilharia, e artigos vindos das antigas
colónias francesas, outros da imigração, numa amálgama de povos que em frente à
Basílica se juntam para recordar as suas correspondentes origens. Claro, não
podia regressar a casa sem um livro. Desta feita o segundo da trilogia Les Pays Lointains, (cujo último volume
li em tempos), encadernado, 890 páginas, pelo preço de... dois euros!
- Um pouco mais tarde, demos um salto
ao museu Picasso. Uma exposição absolutamente notável sob vários pontos de
vista, mostra-nos uma série de trabalhos do Mestre até aqui desconhecidos da
maioria dos visitantes. Obras em posse de privilegiados, fotografias da
intimidade do artista, o percurso de telas de referência provando que cada obra
era objecto de muitos estudos, indecisões e reflexões. Nada parece ter sido
feito ao caso, ao correr do pincel, num momento de inspiração. Pelo contrário,
nesta mostra, somos impelidos a não aceitar as toneladas de artistas que vieram
depois dele, que não sabem desenhar, pensar, executar, montados na ideia que o
abstracto é uma forma livre de arte onde cabe tudo e nada e de onde saem os
génios emmerdeurs. Um exemplo entre
muitos. O quadro Science et Charité
de 1897. Para esta concepção notável, Picasso fez nada mais nada menos que oito
estudos. Curiosamente, dado o tema e sendo ele catalão, no quarto onde a mulher
jaz numa cama, não existe nas paredes nenhum elemento religioso ou antes este
é-nos dado pela presença da freira. Para a célebre composição Les Demoiselles d´Avignon, uma sala
inteira dá-nos a conhecer o esforço do artista em numerosas tentativas para
chegar à perfeição que conhecemos. Ao longo dos cinco andares do edifício,
conta-se também a história das relações pessoais e artísticas do pintor com os
seus contemporâneos e não só. Assim George Braque com quem inicia o período
Cubista, Matisse, Modigliani e outros para trás como Rembrandt. O que também me
impressionou muito, foi a sua vida intima. Uma série de fotografias mostram
Picasso na privacidade da sua propriedade de Mougins. Cenas familiares de
grande beleza com os filhos e a mulher Jacqueline Roque. Este génio, contudo,
começou cedo como prova o quadro Homme a
la Casquette. Picasso tinha 14 anos quando o pintou. Desde então nunca mais
parou. Até à morte levou a vida a trabalhar. E não me venham dizer que foi para
enriquecer. Coco Chanel dizia: “Picasso é a tábua de logaritmos”. A verdade é
porém esta: Picasso foi sempre mais além, explorou tudo o que havia para
explorar, atingiu a plenitude e ao morrer deixou um gigantesco vazio difícil de
preencher.
Sciense ey Charité - 1897 |
Portrait de Dora Maar - 1 |
La lecture - 1932 |
A personagem e o génio |
Portrait de Nusch Éluard - 1937 |
- Falta-me para terminar o romance escrever
umas duas páginas. E, contudo, entrei em derrapagem: um vazio imenso apossou-se
de mim, uma sensação de abandono invade-me. Como se tivesse perdido um parente
querido, estou num sufoco sem saber o que fazer dos meus dias sem os amigos que
comigo têm convivido desde que em 23 de Fevereiro do ano passado nos
encontrámos Conheço-me e sei que vou retardar com diversas versões o final. Não
tanto por este ser importante para a ligação com o todo, mas porque enquanto
vou fazendo vários rascunhos, mantenho-me dentro do nosso ritmo diário de
convívio. Somos uma família no verdadeiro e nobre sentido do termo.
- Outro dia acompanhei o Robert ao Marais
de carro. A distância faz-se em pouco mais de quinze minutos, mas nessa tarde
devido ao fluxo de trânsito, entre ir e vir, perdemos mais de hora e meia. O peripherique, seja a que horas for, está
sempre entupido. É a praga da cidade e dos seus habitantes, os que dentro dela
vivem e os que moram nas redondezas. Evidentemente, para mim, foi a descoberta
da Paris dos pobres, dos migrantes, dos que vivem com meia-dúzia de tostões.
Passei por um bairro onde praticamente só vivem negros, indianos, tailandeses.
As lojas oferecem um mundo de serviços e produtos dos seus países, as ruas
estão pejadas de homens a comercializar coisas estranhas, decerto muito boas,
mas que nada têm a ver com os hábitos parisienses ou europeus. É um mundo vasto
dentro de uma casca hexagonal.