Sexta,
19.
Esta
manhã na Brasileira parecia um dia de sorte para mim. Combinei com o Paulo
Santos encontrar-nos lá e depois chegaram o António Segurado e o Alexandre. O
António, apesar da idade, não larga o saco-pinga-amor onde guarda a serpente
venenosa. Logo se meteu com uma miúda da Formosa em férias por cá. Eu entrei na
conversa - em inglês - pondo-a de sobreaviso ao isco insidioso na ponta do
anzol que é o meu amigo de longa data. Quando ela saiu, o deleitado diz aos
nossos amigos que eu tenho um sotaque óptimo. Espanto meu! Detesto aquela
língua mastigada e faço o que posso para a esquecer. Todavia, aquela
demonstração de amizade, tocou-me. O António que é arquitecto, fez a sua
formação em Londres onde esteve quase metade da vida. Chegou a viver na bela
casa de campo (como já aqui contei) de Margaret do filme O Regresso a Howards End, adaptado do romance de E. M. Forster. Mal refeito do galanteio, entra o Paulo
a elogiar o meu “excelente português” e a “forma interessante” como eu aqui me
exprimo. “O teu português ao lado do meu!” Generoso o nosso homem da Armada e
dos números. Dali era suposto irmos almoçar ao sítio do costume, mas eu
desviei-os para o Adega da Mó onde acabámos por abancar. Almoço bem regado de
temas vadios, ao jeito dos prazeres do João Corregedor, isto é, atravessando a
arte, a literatura, com uma escapadela aos gregos, imagine-se!
- Os infelizes treze filhos do casal
que os deteve algemados, mal nutridos, um banho por ano, e outras torturas
absolutamente inqualificáveis, estão neste momento num hospital à guarda do
Estado. Há a possibilidade de os pais ficarem em prisão até ao fim dos seus
dias. Bom. A mim o que me espanta, como foi possível que a vizinhança cujas
casas de um lado e outro da vivenda dos criminosos, nunca tivessem tido a
curiosidade de conhecer a enigmática família contígua. O sítio, do que se vê na
TV, é povoado, há vida a cruzar-se à porta da grande residência. Mistério. Ou
talvez não. De facto, a solidão, o vazio da vida dos nossos dias que aliena,
destrói, subjuga a valores bárbaros ou mesquinhos, egoístas e idiotas, é a
principal causa de fenómenos como este. Indignam, revolta, espantam... por dois
ou três dias.