quinta-feira, janeiro 25, 2018

Quinta, 25.
Uma parte da Europa está submersa. Chuvas torrenciais isolaram departamentos em França, obrigaram as populações a fugir, auto-estradas ficaram intransitáveis, casas inundadas, os caudais de água a correr como rios, o Sena, em Paris, atinge as pontes que eu tantas vezes atravesso e separam as duas margens: esquerda e direita. Por cá, a chuva tomba aos soluços quando precisávamos que ela caísse desbragada.  

         - Aproveitando o bom tempo, avanço em vários pontos. Nesta altura, intervalo o jardim com o escaldeirar das árvores e enriquecimento em estrume, e o aparo da lenha e o empilhamento. Alguns muros de madeira decoram a quinta. A Piedade diz que não vou ter espaço para guardar tanta quantidade. Mas a mim pouco me importa. Ver a beleza desta decoração disseminada por aqui e por ali, perder-me em pensamentos enquanto a admiro, abrir o inverno ao calor da lareira, à paz e diálogo que ela me proporciona quando nos longos serões a louvo como a uma deusa, um olho na página do livro, outro nas labaredas de todas as cores e tamanhos, em flutuações - eis o espectáculo inolvidável da chaminé.
Os belos muros dos invernos do meu contentamento 

         - Mas as coisas não findaram bem. O altruísmo do bombeiro que aí andou, resultou na sofreguidão do dinheiro. Desde que aqui me instalei, poucos ou nenhuns dos operários que contratei cumpriram com lealdade o que se combinou. E lembrar-me eu que foi por esta gente que os comunistas se bateram, morreram, foram encarcerados! Este que andou a cortar os arbustos, antes do Natal e contrariamente ao combinado, pediu-me que liquidasse o valor acordado. Aceitei depois de cenas incríveis. Ele dizia: “Para ver que sou honesto, até vou deixar aí as motosserras.” Deixou. Ficaram até a semana passada quando me telefonou a pedir a devolução, “porque tinha de ganhar 500 euros no fim-de-semana para uma operação à filha no Hospor”. Quando se apanhou com as máquinas no carro, disse-me que só vinha cortar o último cedro e mais uns quantos troncos se lhe pagasse mais 300 euros. Pu-lo porta fora, ameacei-o com o tribunal. Ele respondeu que ia falar com a sua advogada. No dia seguinte telefonou a insistir no dinheiro e a dizer que não tinha medo de advogados porque a sua defensora lhe havia dito que não havendo papéis, era a palavra dele contra a minha
O cedro que o ganancioso deixou para trás

         - Se falo disto, é para me convencer de que os romancistas não inventam coisa nenhuma. A vida encarrega-se de os reduzir à sua insignificância. Vai daí, ontem, fui perguntar ao Fortuna se conhecia o apaga fogos. Disse-me que não, mas ia informar-se. A conversa prosseguiu e a dada altura, eu digo-lhe que se lhe dei o trabalho foi por consideração à sua entrega aos outros nas diversas acções que os bombeiros efectuam à comunidade. Logo mestre Fortuna: “Deixe-se disso! Não vou dizer que sejam todos iguais, mas poucos escapam. A maior parte dos bombeiros daqui, é bombeiro para ter emprego na câmara.” Ele tem razão. O tipo que aqui andou, era trabalhador da câmara recolhendo o lixo de noite. 

         - Esta manhã, quando a Piedade chegou, conto-lhe o meu infortúnio. Rezou ela então, sem tirar nem pôr, a mesma história passada com o neto que confiou o arranjo do carro a um bombeiro. Este, depois de muitas peripécias, ia-lhe extorquindo somas de dinheiro. Impaciente, Felipe, exige a viatura de volta. Obteve esta resposta do “mecânico”: “Levas o carro se deres mais dinheiro. Preciso de tratar a minha filha.” O rapaz recusa. O bombeiro diz-lhe então que vá ao Multibanco pagar o seguro do seu próprio carro. Nova recusa. Nesse mesmo dia, constatando o óbvio, o moço levantou o carro para o ir pôr noutro mecânico com oficina digna do nome.


         - Histórias destas não há ninguém que não tenha vivido neste rectângulo à beira-mar esquecido. A grande maioria destes “trabalhadores” são biscateiros, portanto, pessoas sem formação nem qualificação, vivendo dos incautos. Os montantes que por aí correm em acções como estas, devem ser aos milhares. Dir-me-ão que a culpa foi minha porque confiei. É verdade. Mas então que margem fica para a honra da palavra dada, a confiança no outro, a liberdade da opção exercida olhos nos olhos! Não devemos fazer confiança em ninguém, ouso já da boca dos meus leitores. Mas que mundo assustador me propõem! As reações humanas assim estabelecidas, são trancas na porta da convivência feliz e despreocupada. Por outro lado, não é a justiça dos homens que nos pode valer. Todos sabemos quanto custa hoje uma causa em tribunal! De todo o modo, como se constata no dia-a-dia, os tribunais estão a abarrotar de crimes de colarinho branco, de políticos corruptos, de gestores e de toda a ladroagem de alto coturno que os entope. O que sobra para o cidadão confrontado com situações como estas, uma ninharia quando comparada com os crimes daqueles que se aproveitam da democracia para a trair pelas costas. O pequeno crime não dá lucro ao Estado, nem enriquece as centrais de advogados. Mas tem, todavia, uma vantagem: transforma em cidadãos honrados, em beatos os criminosos de refinada espécie.