Quinta,
25.
Uma
parte da Europa está submersa. Chuvas torrenciais isolaram departamentos em
França, obrigaram as populações a fugir, auto-estradas ficaram intransitáveis,
casas inundadas, os caudais de água a correr como rios, o Sena, em Paris,
atinge as pontes que eu tantas vezes atravesso e separam as duas margens:
esquerda e direita. Por cá, a chuva tomba aos soluços quando precisávamos que
ela caísse desbragada.
- Aproveitando o bom tempo, avanço em
vários pontos. Nesta altura, intervalo o jardim com o escaldeirar das árvores e
enriquecimento em estrume, e o aparo da lenha e o empilhamento. Alguns muros de
madeira decoram a quinta. A Piedade diz que não vou ter espaço para guardar
tanta quantidade. Mas a mim pouco me importa. Ver a beleza desta decoração
disseminada por aqui e por ali, perder-me em pensamentos enquanto a admiro, abrir
o inverno ao calor da lareira, à paz e diálogo que ela me proporciona quando
nos longos serões a louvo como a uma deusa, um olho na página do livro, outro
nas labaredas de todas as cores e tamanhos, em flutuações - eis o espectáculo inolvidável
da chaminé.
Os belos muros dos invernos do meu contentamento |
- Mas as coisas não findaram bem. O
altruísmo do bombeiro que aí andou, resultou na sofreguidão do dinheiro. Desde
que aqui me instalei, poucos ou nenhuns dos operários que contratei cumpriram
com lealdade o que se combinou. E lembrar-me eu que foi por esta gente que os
comunistas se bateram, morreram, foram encarcerados! Este que andou a cortar os
arbustos, antes do Natal e contrariamente ao combinado, pediu-me que liquidasse
o valor acordado. Aceitei depois de cenas incríveis. Ele dizia: “Para ver que
sou honesto, até vou deixar aí as motosserras.” Deixou. Ficaram até a semana
passada quando me telefonou a pedir a devolução, “porque tinha de ganhar 500
euros no fim-de-semana para uma operação à filha no Hospor”. Quando se apanhou
com as máquinas no carro, disse-me que só vinha cortar o último cedro e mais
uns quantos troncos se lhe pagasse mais 300 euros. Pu-lo porta fora, ameacei-o
com o tribunal. Ele respondeu que ia falar com a sua advogada. No dia seguinte
telefonou a insistir no dinheiro e a dizer que não tinha medo de advogados
porque a sua defensora lhe havia dito que não havendo papéis, era a palavra
dele contra a minha
O cedro que o ganancioso deixou para trás |
- Se falo disto, é para me convencer
de que os romancistas não inventam coisa nenhuma. A vida encarrega-se de os
reduzir à sua insignificância. Vai daí, ontem, fui perguntar ao Fortuna se
conhecia o apaga fogos. Disse-me que não, mas ia informar-se. A conversa
prosseguiu e a dada altura, eu digo-lhe que se lhe dei o trabalho foi por
consideração à sua entrega aos outros nas diversas acções que os bombeiros efectuam
à comunidade. Logo mestre Fortuna: “Deixe-se disso! Não vou dizer que sejam
todos iguais, mas poucos escapam. A maior parte dos bombeiros daqui, é bombeiro
para ter emprego na câmara.” Ele tem razão. O tipo que aqui andou, era
trabalhador da câmara recolhendo o lixo de noite.
- Esta manhã, quando a Piedade chegou,
conto-lhe o meu infortúnio. Rezou ela então, sem tirar nem pôr, a mesma
história passada com o neto que confiou o arranjo do carro a um bombeiro. Este,
depois de muitas peripécias, ia-lhe extorquindo somas de dinheiro. Impaciente,
Felipe, exige a viatura de volta. Obteve esta resposta do “mecânico”: “Levas o
carro se deres mais dinheiro. Preciso de tratar a minha filha.” O rapaz recusa.
O bombeiro diz-lhe então que vá ao Multibanco pagar o seguro do seu próprio
carro. Nova recusa. Nesse mesmo dia, constatando o óbvio, o moço levantou o
carro para o ir pôr noutro mecânico com oficina digna do nome.
- Histórias destas não há ninguém que
não tenha vivido neste rectângulo à beira-mar esquecido. A grande maioria
destes “trabalhadores” são biscateiros, portanto, pessoas sem formação nem
qualificação, vivendo dos incautos. Os montantes que por aí correm em acções
como estas, devem ser aos milhares. Dir-me-ão que a culpa foi minha porque
confiei. É verdade. Mas então que margem fica para a honra da palavra dada, a
confiança no outro, a liberdade da opção exercida olhos nos olhos! Não devemos
fazer confiança em ninguém, ouso já da boca dos meus leitores. Mas que mundo
assustador me propõem! As reações humanas assim estabelecidas, são trancas na
porta da convivência feliz e despreocupada. Por outro lado, não é a justiça dos
homens que nos pode valer. Todos sabemos quanto custa hoje uma causa em
tribunal! De todo o modo, como se constata no dia-a-dia, os tribunais estão a
abarrotar de crimes de colarinho branco, de políticos corruptos, de gestores e
de toda a ladroagem de alto coturno que os entope. O que sobra para o cidadão
confrontado com situações como estas, uma ninharia quando comparada com os
crimes daqueles que se aproveitam da democracia para a trair pelas costas. O
pequeno crime não dá lucro ao Estado, nem enriquece as centrais de advogados. Mas
tem, todavia, uma vantagem: transforma em cidadãos honrados, em beatos os
criminosos de refinada espécie.