quinta-feira, janeiro 18, 2018

Quinta, 18.
Dia de enfeitiçar. Um sol na forma de nuvem acolhedora atirou-se do firmamento abaixo com um largo sorriso. Aproveitei uma parte da manhã para começar a aparar as sebes junto à casa e arranjar um pequeno espaço para um canteiro de hortênsias. Saí da iniciativa como se me tivessem dado uma sova, os rins numa papa, mas feliz. A felicidade é um pequeno sopro que vai e vem, mas deixa um universo de satisfação e paz à flor dos sentidos. De tarde, instalei a chaise longue no terraço e mergulhei na tradução de Frederico Lourenço tomado de um prazer encantatório. Vou a metade das mil páginas. Os Profetas parecem loucos ensandecidos e revoltados ameaçando Israel, Egipto, Síria, Turquia todo esse imenso espaço do Médio Oriente onde a cristandade nasceu com terríveis sanções de YHWH.

         - Suite do folhetim Câmara de Palmela. Estando a bola do meu lado, remeti aos estimados autarcas esta missiva:

Caros Senhores,

Recebi o que por direito me era devido - a anulação da certidão de dívida respeitante à última factura de a água que não gastei.

Ficou por esclarecer a razão que levou essa autarquia a ameaçar-me, quando a factura acima referida foi liquidada no prazo devido, isto é, 4 deste mês e a carta-ameaça que me remeteram traz a data de dia 8 do p.p.

Se não for possível obter esclarecimentos concretos da Câmara de Palmela, pedi-los-ei à instituição acima que se conduz pelas leis gerais da República.

Como devem calcular estou profundamente indignado com técnicas ou laxismos que se dirigem aos cidadãos da maneira ligeira como esta. A Câmara está ao serviço dos cidadãos e não o contrário – pelo menos foi assim que aprendi. Por extensão, imagino o que aconteceria a um pobre coitado ignorante!

Cumprimentos.

         - O livro de Paul Morand, Journal d´un attaché d´ambassade, está repleto de histórias saborosas. O escritor, entre 1916-1917, em plena guerra, é secretário de embaixada. Apesar do conflito bélico, a vida em Paris é folgada, com almoços e jantares constantes em casa de princesas, condessas, condes, barões, reis fugidos dos tronos, embaixadores e gente das letras e do espectáculo. É a maravilhosa Belle Époque.

Três relatos:

“Un ami dit à Degas: ´ Tu n´as pas de téléphone? – Non. Et toi? – Moi, oui. – Alors on te sonne comme un domestique, et tu y vas?´

“On raconte que les prisonniers marocains se précipitaient à leur arrivée dans les camps allemands sur tous les Ecossais en jupe, qu´ils prenaient pour des femmes...”

Marcel Proust conta “que Montesquiou demande au Dr. Proust (pai do célebre autor da Recherche) une consultation pour Iturry, son ami, son secrétaire, son commensal, son inséparable de vingt ans. Le docteur répond: ´Son cas est mortel, ne le lui dites pas. – Il faut que je le lui dise, répond Montesquiou, il a des tas de commissions à faire pour moi.”


O curioso, tendo o jovem Morand vivido num meio homo, nunca ao longo do livro com 444 páginas, ter emitido qualquer forma de censura ou observação jocosa ao tema. Todavia, ao longo das 1800 páginas do Journal Inutile, publicado após a sua morte, em Julho de 1976, são muitas as referências claras a este e àquele. Por exemplo: ele era muito próximo de Julien Green, mas isso não evitou algumas facadas directas e a dada altura, vai ao ponto de se interrogar se as personagens femininas do autor de Moira, não seriam homens.