quarta-feira, janeiro 03, 2018

Quarta, 3.
O Guilherme Parente, que tem já uma senhora idade, perguntou ao seu médico se devia vacinar-se contra a gripe e recebeu um rotundo não. O clínico é cá dos meus que nunca me vacinei. A indústria farmacêutica é que não deve apreciar um doutor que não colabora nos seus fabulosos lucros.

         - Fui conhecer pessoalmente o “meu” editor. Tivemos uma conversa franca e longa de mais de uma hora. É um homem ainda novo, sereno, com o rosto atapetado de uma barba jihadista, e uma simpatia contagiante. Logo de entrada lembrou que o nosso primeiro encontro havia sido há dois anos. De facto, caro Helder de Sousa! Entretanto, depois de lhe ter remetido O Rés-do-Chão de Madame Juju há cerca de dois anos, em Novembro, de Paris, enviei-lhe O Pesadelo dos Dias Felizes. Ele caiu do espanto que lhe causou este romance que eu pensei endoidecer durante os dois anos que levei a escrevê-lo e quer publicá-lo já deixando para trás aquele que eu havia composto em primeiro. Apresenta-me o Contrato, dá-me explicações, mas eu, no íntimo, estou num mundo de hesitações e objecções, protesto que o meu trabalho é complicado, não vai ter leitores, tem uma construção romanesca difícil, o tema (em verdade os temas) são, como direi, arrojados, quase proibitivos, a descida à alma humana é nele descarnada ao limite do sofrimento mais profundo... O Amor (com a grande), embora seja a teia temática, é da dor, do sofrimento, da descoberta do eu enquanto libertação da carga moral, social, sexual que o livro trata. Mais uma vez saí sem ter posto a assinatura no documento.

         - O João Corregedor com quem tinha estado horas antes na Brasileira, veio ao meu encontro com o Guilherme e o Carlos. Com o João e o Carlos, abanquei na fnac à conversa até ao fim da tarde. Forma de falar. Em verdade eles malharam-me forte e feio. Não compreendem o meu comportamento, os meus receios, as minhas dúvidas. Tecem elogios ao meu trabalho, dizem-me para assinar o contrato, e prometeram que amanhã no almoço de Natal habitual com jornalistas, pintores, escultores, actores e escritores amigos, vão sovar-me se eu não tiver a decisão tomada.


         - A verdade é esta: o que é melhor, mais excitante, mais empolgante, mais ronronante no acto de amor: o início ou o fim? Pela minha parte, mergulho com prazer no algodão terno das carícias, dos suspiros amorosos, dos quentes afectos, dos beijos arrebatados, da pele contra pele quando nela perpassa o frison da intensidade dos olhares, da respiração descontrolada, dos dedos que tacteam, deslizam na inocência que arrepia, param o tempo, liquidifica os instantes, extasia o que descobre, eterniza neles o silêncio e fica a levitar através dos séculos-idade. O final, é um momento animalesco, praticado sem grandes alterações por milhões de seres. Assim é a escrita – a minha pelo menos. Um puro acto de amor.