quarta-feira, março 01, 2017


Quarta, 1 de Março.
Outro dia encontrei-me com o João Corregedor. Aos primeiros acordes da união, logo a política entrou triunfante, levada na enxurrada dos nomes transformados em pragas, como castanhas assadas, quentes e saborosas, a pular de gosto. Nele a política deve ser o último suspiro que o seu cérebro exala na hora da morte. Está-lhe na massa do sangue, e os anos de Parlamento perseguem-no na reforma muito pouco reformada. Estando quase sempre de acordo com ele, gostando de o ouvir falar dos meandros inacessíveis de certos corredores sombrios e das figuras e figurões que ele conhece como poucos, por vezes fico estático a gozar da sua inteligência fina (e grossa), da sua paixão pelo discurso político, vinculado aos princípios do MDP-CDE, quiçá mais puros, galvanizadores quando sobre eles a materialização nunca ficou concluída. Generoso, amigo do seu amigo, tendo na amizade a profunda solidariedade que ultrapassa largamente as divergências, João é alguém de fino recorte educacional, e mesmo quando se irrita ou fala mal deste e daquele, pressentimos que nesse seu estado de alma não mora o rancor, o ódio, a vingança. Vai tudo na narrativa, mas esta está agrilhoada à sensibilidade que nele é exercida com despojamento.

         - Assim, estando ele com hora marcada para a sessão de fisioterapia e eu ida ao cinema, fez questão de me acompanhar no frugal almoço que tomei no Centro Comercial do Chiado. Estivemos à conversa durante mais uma hora, sem que ele aceitasse um simples copo de água. Frente a frente, esgrimimos o tema Sócrates (embora ele me dissesse que não gosta da personagem) e eu que estou em desacordo com ele, limitei-me a ouvi-lo sem que, contudo, o seu parecer tivesse alterado o que penso da sinistra figura. Já no que diz respeito a Marcelo e a Cavaco, comungo das suas ideias. Despedimo-nos na rua. Ele desceu o Chiado, eu ao rés-do-chão da Fnac ao encontro dos meus queridos amigos, os livros.

         - No cinema Monumental, assisti à ultima sessão da tarde. Stefan Zweig encheu a tela por mais de hora e meia, pelo olhar fulgurante e atento, de Maria Schrader. Gostei do prólogo, seguido de quatro capítulos e epílogo que a realizadora encontrou para nos oferecer a densidade humana do escritor austríaco de O Mundo de Ontem e de mais quase meia centena de títulos. Fugiu a mostrar-nos a guerra e seus derivados, já muito batida. Preferiu quatro passagens da vida do escritor que nos remetem para o seu fim no Brasil, em Petrópolis, a Mitteleuropa que ele sonhou como a união dos valores do espírito baseada na arte e na democracia e não olvidou as fraquezas do autor de Erasmo de Roterdão, as suas hesitações na aceitação do nazismo de que é elemento o congresso dos escritores de Buenos Aires, em 1937. Zweig, profundamente humanista, acreditando no diálogo e detestando o confronto, preferiu pôr termo à vida com a mulher Lotte, na terra que ele glorificava e onde escolheu exilar-se. A decadência da Europa do espírito e da cultura na qual ele reinou, parecia-lhe impossível voltar a renascer. Eu estou do lado de Klaus Mann junto com a irmã Erika, viu muito cedo que não se pode dialogar com loucos, fanáticos e criminosos, que em nome da democracia constroem a ditadura e o caos. Contudo, não ignoro que na base da destruição dos valores democráticos e humanos, está quase sempre a obsessão partidária e os interesses mesquinhos daqueles que sobem ao poder como quem monta a um ringue de boxe. Uma palavra para a interpretação de Tómas Lemarquis no papel de Stefan Zweig. Intuitivo, percebeu que a personagem devia passar no ecrã com o peso interior que o escritor enquanto ser emotivo, débil e sublime carrega. Magistral.

         - Escrevo com o ruído ensurdecedor do tractor que grada a terra. Está uma tarde tristonha. As nuvens escuras acastelam-se mudas no horizonte. O Black não me larga os pés. Todo o dia procurou refúgio em mim que sou mais frágil do que ele. Detesta o barulho como eu a invasão que aniquila o silêncio. Vou ficar a ver a noite descer sobre este chão limpo das desgraças do último tratorista que aí andou. O que acabou de sair, comentando o bicho que trouxe todo bonito, esclareceu: “esta máquina deve ter a sua idade, uns cinquenta anos.” Bom.