terça-feira, março 21, 2017

Terça, 21.
Para aliviar das coisas que empreendi desde o início do ano, ao todo talvez umas seis obras duras de roer, não só em extensão como em conteúdo, peguei no livro de Paul Morand, Londres. Trata-se de uma visão da cidade onde o escritor exerceu um cargo diplomático e, portanto, do olhar de alguém que fala do que sabe e com o brilho estilístico que desde a primeira obra que li dele me encantou. Morand alia muito bem o ligeiro habitado de cultura, como a cultura sem o pedantismo que pretende transformá-la no exercício de iluminados.

         - Ontem meti-me com uma senhora que vinha a sair do super Corte Inglês: “leva aí um carrego para um quartel”. Ela riu-se e devolveu-me: “Tenho três filhas e duas são deficientes. Aqui pelo menos tenho confiança na carne, posso reclamar se acontecer alguma coisa. Venho só uma vez por semana, porque é caro.”

         - Como o Corregedor me desafiou a ir ter com ele à Brasileira, lá voltei hoje. O Chiado, pelas dez e meia da manhã, estava irreconhecível: o barulho, a anarquia, as formigas de veraneantes a rabiar por aqui e por ali, poucos portugueses, a zona tomada por aluviões de seres que não se percebia bem o que ali faziam, o que queriam, se por ventura sabiam onde estavam. Era como tivesse havido uma invasão e os invasores desprezassem os nativos por incómodos. Bom. Quanto aos amigos, juntos no interior do café, logo os convenci a trazê-los à Adega da Mó, evitando assim o Aqui Há Peixe que é caríssimo e o João resiste a lá ir por causa dos maus encontros. De modo que o Guilherme subiu ao peixe, nós descemos ao Rossio. Que momentos divertidos, conversados, gozados, alterados por vezes, apaixonantes sempre! Eu sabia que o Carlos Soares é especialista de História d ´Arte dos séculos XV e XVI, mas ignorava que conhecia a Bíblia com a profundidade que a conversa nos conduziu. Eu tenho a mania que sei umas coisas, ainda me arribei a combater determinados aspectos do Livro e da vida de Jesus Cristo, mas depressa compreendi que ele passa-me a palma. O João Corregedor pouco ou nada entende do tema, o Virgílio limitava-se a dizer que era católico praticante, a passagem do Salvador pela terra e os objectivos que levaram à sua morte, que o meu amigo enfunou dizendo ser políticos – entre judeus e romanos -, abespinharam-me um tanto. O Carlos tocado com o álcool, eu pelo entusiasmo, fizemos virar cadeiras na nossa direcção e o restaurante que é pequeno parou para ouvir a nossa entusiasta conversa. (O empregado quando deixámos a mesa e eu lhe pedi desculpa pela longa conversa que nos reteve até às cinco da tarde, respondeu “isso é raro hoje, porque as pessoas não falam, estão a conversar com os telemóveis”.)  


         - Dali fomos visitar o Simão na Rua dos Fanqueiros. Somos todos apaixonados por livros e livros é o que não falta nos escritórios do meu amigo livreiro. Carlos estava borbulhante de temas. Logo entre Simão e ele instalou-se uma conversa sobre Arte que deixou o Simão babaca. O homem tem uma memória impressionante, conhece meio mundo, é inclusive conselheiro de arte para o Banco de Portugal, sabe de arte-sacra como poucos, viajou e disse uma coisa com a qual estou de acordo: “Toda a arte parte da Bíblia.” João e Carlos acompanharam-me aos barcos e na estação fluvial despedimo-nos com a promessa de nos reencontrarmos aqui em Palmela.