Terça,
21.
Para
aliviar das coisas que empreendi desde o início do ano, ao todo talvez umas
seis obras duras de roer, não só em extensão como em conteúdo, peguei no livro
de Paul Morand, Londres. Trata-se de
uma visão da cidade onde o escritor exerceu um cargo diplomático e, portanto, do
olhar de alguém que fala do que sabe e com o brilho estilístico que desde a
primeira obra que li dele me encantou. Morand alia muito bem o ligeiro habitado
de cultura, como a cultura sem o pedantismo que pretende transformá-la no
exercício de iluminados.
- Ontem meti-me com uma senhora que
vinha a sair do super Corte Inglês: “leva aí um carrego para um quartel”. Ela
riu-se e devolveu-me: “Tenho três filhas e duas são deficientes. Aqui pelo
menos tenho confiança na carne, posso reclamar se acontecer alguma coisa. Venho
só uma vez por semana, porque é caro.”
- Como o Corregedor me desafiou a ir
ter com ele à Brasileira, lá voltei hoje. O Chiado, pelas dez e meia da manhã,
estava irreconhecível: o barulho, a anarquia, as formigas de veraneantes a
rabiar por aqui e por ali, poucos portugueses, a zona tomada por aluviões de
seres que não se percebia bem o que ali faziam, o que queriam, se por ventura
sabiam onde estavam. Era como tivesse havido uma invasão e os invasores
desprezassem os nativos por incómodos. Bom. Quanto aos amigos, juntos no
interior do café, logo os convenci a trazê-los à Adega da Mó, evitando assim o
Aqui Há Peixe que é caríssimo e o João resiste a lá ir por causa dos maus
encontros. De modo que o Guilherme subiu ao peixe, nós descemos ao Rossio. Que
momentos divertidos, conversados, gozados, alterados por vezes, apaixonantes
sempre! Eu sabia que o Carlos Soares é especialista de História d ´Arte dos
séculos XV e XVI, mas ignorava que conhecia a Bíblia com a profundidade que a conversa nos conduziu. Eu tenho a
mania que sei umas coisas, ainda me arribei a combater determinados aspectos do
Livro e da vida de Jesus Cristo, mas depressa compreendi que ele passa-me a
palma. O João Corregedor pouco ou nada entende do tema, o Virgílio limitava-se
a dizer que era católico praticante, a passagem do Salvador pela terra e os
objectivos que levaram à sua morte, que o meu amigo enfunou dizendo ser políticos
– entre judeus e romanos -, abespinharam-me um tanto. O Carlos tocado com o
álcool, eu pelo entusiasmo, fizemos virar cadeiras na nossa direcção e o
restaurante que é pequeno parou para ouvir a nossa entusiasta conversa. (O
empregado quando deixámos a mesa e eu lhe pedi desculpa pela longa conversa que
nos reteve até às cinco da tarde, respondeu “isso é raro hoje, porque as
pessoas não falam, estão a conversar com os telemóveis”.)
- Dali fomos visitar o Simão na Rua
dos Fanqueiros. Somos todos apaixonados por livros e livros é o que não falta
nos escritórios do meu amigo livreiro. Carlos estava borbulhante de temas. Logo
entre Simão e ele instalou-se uma conversa sobre Arte que deixou o Simão
babaca. O homem tem uma memória impressionante, conhece meio mundo, é inclusive
conselheiro de arte para o Banco de Portugal, sabe de arte-sacra como poucos,
viajou e disse uma coisa com a qual estou de acordo: “Toda a arte parte da Bíblia.” João e Carlos acompanharam-me
aos barcos e na estação fluvial despedimo-nos com a promessa de nos reencontrarmos aqui em Palmela.