quinta-feira, março 02, 2017

Quinta, 2.
Durante muito tempo, cada vez que nos encontrávamos, lá vinha: “Então quando aparece?” António Osório, o pintor perdido num decore grato a Luchino Visconti, em Azeitão, recebeu-me, enfim, numa tarde cinérea. Depois de subir um lance de escadas de pedra gastas, puxei a corda do sino e prontamente o vi assomar ao portão, qual guardião de um tempo perturbado, quando Portugal estava sob o domínio Filipino, Osório parecia uma figura de aristocrata saído do século XVI. Passado o alegrete que ele cuida com fantasia, montamos mais uns quantos degraus e eis-me no interior de um palácio carregado do húmus do tempo e de onde nos chegam os ecos surdos revolutos de antanho e o silêncio sepulcral dos séculos. Estacamos por momentos à entrada, enquanto ouço uns laivos de história que me dizem das asneiras que o último proprietário operou no interior do edifício. Desde logo o grande salão à direita, que recebeu os nobres amigos de D. Jorge de Lancastre para bailes animados, repartido em múltiplas divisões com um longo corredor que vai até ao topo de uns trinta metros, para onde deitam os aposentos. Atrás de nós, fica um impressionante terraço, assente sobre colunas em cantaria, decorado com azulejos do séc. XVI, reproduzindo paisagens ao correr da parede de uns quarenta metros, que deita para um jardim abandonado onde outrora havia um lago, protegido por um corrimão de ferro, que decerto no tempo de D. Jorge, filho bastardo de D. João II, seria em madeira decorada, como acontece com os tectos. Regressados ao interior, fomos assentar os costados numa saleta apinhada de livros, iluminada por uma janela de guilhotina. No espaçoso hall, ali como no resto do palácio, os tectos pareceram-me mudéjares, em caixotão, muito bem conservados. Uma enorme arca que foi à Índia, portanto, do séc. XV ou XVI, impõe-se a par da profusão de mobiliário antigo, algum verdadeiramente raro, casando com o estilo das divisões. Durante horas foi um desfiar de memórias. António Osório de Castro pertence a uma família com história e o cruzamento de culturas fez entrar, inopinadamente, naquela sala muitos nomes para mim familiares, com quem mantive amizade e troca de impressões: escritores, jornalistas, actrizes (uma prima dele é a saudosa Isabel de Castro), pintores, escultores, políticos, enfim, um passado em muitos casos presente, ali introduzido para longas horas de conversa, ao ponto de ter ficado enregelado porque é difícil e caro aquecer um palácio daqueles e não obstante a saborosa manta inglesa a cobrir os joelhos dele e que eu recusei para mim. Vi a noite descer sobre a grande sala de visitas que é o largo quando se chega a Azeitão. Osório veio acompanhar-me ao portão, não sem antes ter visitado o resto do palácio onde a arte não falta e o silêncio passeia espesso pelo enorme espaço. Visto do fundo da praça principal, desenhado no horizonte tomado já pela noite, o Palácio dos Duques de Aveiro, na sua fachada renascentista, adossado o lado lateral esquerdo de onde acabo de sair, ergue-se decadente por entre as folhas reescritas da memória que a ninguém interessa engrandecer. António Osório de Castro é, entre os inquilinos do casarão pesado de história, o único que beija as páginas que os séculos persistem em manter vivas.