Terça, 6.
A canícula não nos larga. Ontem deixei a
quinta com 41 graus e entrei no Fertagus com a mesma temperatura que foi
variando entre os 40 e os 38 ao longo do percurso até à capital. Sobre o Tejo
desceu para trinta e cinco graus, mas à chegada a Avenida de Roma estava em 38
graus centígrados. À noite não baixou muito, porque quando regressei a casa o
interior do comboio afixava 30 graus. Hoje ameaçam-nos com 40 e 44 graus. E
claro os fogos não dão descanso aos infatigáveis bombeiros.
- Simão levou-nos, à Conceição e a mim, para a Mouraria, que mais
parecia o suck marroquino pelas dez da noite, com suas ruas estreitas que
negros, chineses e indianos povoam com
seus trajos coloridos, seus odores, sua vida gingona, solta no afugentamento do
desespero e condicionada no substrato da sobrevivência. Queria ele levar-me a
conhecer um restaurante típico da cozinha além Europa. Para isso entrámos num
prédio esventrado, grampámos quatro andares de escadas carcomidas, e chegados
ao dito restaurante com língua de fora e a transpirar por todo o lado, que por
acaso estava fechado e o dono nos avisou de que para a próxima devíamos
telefonar a marcar presença, ainda havia mais um lance de escadas para enfim alcançarmos
o terraço exterior de onde a vista sobre a Baixa era de ter em conta a par das
iguarias que não cheguei a saber de onde provinham. Voltámos a descer no escuro,
sempre na retranca, não fosse surgir ao caminho um miralmuminim armado em
vampiro. A fome apertava. Na Almirante Reis, a nossa amiga topou uma casa sua
conhecida de há pelo menos quatrocentos anos, tipicamente portuguesa, com um
excelente ar condicionado que nos soube melhor a par da cerveja fresca que todo
o repasto. No caso uma marisqueira com a particularidade de a Conceição ser
alérgica a qualquer tipo de bivalvo. Bref.
Prossigamos. Antes – e foi esse o motivo que me levou a Lisboa – estivemos num
apartamento entre a Praça do Areeiro e o Aeroporto, que o Simão quis que eu
opinasse antes de assinar o contrato com a proprietária e mudar-se da Baixa
para lá. Outra curiosidade: eu gostei do espaço, vi nele possibilidades de
conforto e dignidade de vida; a Conceição detestou-o e deixou ainda mais
baralhado o nosso amigo.
- Aproveito a deixa para dissertar sobre o que é nos nossos dias a
segurança das pessoas ou antes a falta dela. Já não estamos seguros em lado
nenhum: emprego, rua, espaços públicos, habitação, igrejas. O Estado com a
chama caritativa do protecionismo, reduziu-nos a seres periclitantes de
equilíbrio. É o caso da lei do arrendamento. Agora, ao fim de um curto período
de tempo, ou porque o senhorio deixou de simpatizar com o inquilino, ou porque
quer fazer dinheiro fácil, ou porque os filhinhos queridos não o deixam dormir,
enfim, por mil e uma razões o senhorio pode pôr o arrendatário na rua. Quer ele
tenha arranjado pouso ou não. O desarranjo que um cenário destes provoca nas
pessoas que não são proprietárias da sua habitação, deve ser enorme. Se ainda
por cima, como no meu caso e no do Simão, houver milhares de livros a demover,
então é catastrófico. Para não falar dos preços mirabolantes que pedem por um
buraco indigno. Lembro-me de Julien Green que aos noventa anos de idade teve
que enfrentar o dono do apartamento onde vivia que tudo fez para o pôr fora. Que
mundo este! Eu desde que abandonei o tecto familiar, só tive dois endereços: o
da Rua de S. Marçal, ao Príncipe Real e este onde escolhi viver em permanência
desde 1998. Que Deus me proteja de terrores semelhantes e me conserve por muito
tempo neste sítio aprazível onde me sinto no paraíso.