Sexta, 3.
Alterei os horários com a vinda do calor.
O que fazia antes de manhã (a escrita), passei a fazer a seguir ao almoço
depois das duas horas de leitura. Todavia, por vezes, para aliviar a pressão, vou lá fora banhar-me da tarde
parada, corcovada de calor, esmagada ao peso do silêncio, onde apesar de tudo
me sinto bem, com a impressão de que o mundo deixou de existir e eu solitário
continuo nas trevas que o cobriam antes de Adão e Eva, quando os deuses e os
titãs disputavam a terra. Caminho até ao portão, não no coxear arrebitado do
inverno, mas no da procissão do Senhor dos Passos. Este trilho que saboreio escutando
o cantar rouco do cuco, serve para desentorpecer a cabeça da escrita, distender
os músculos e a vista até aonde o mundo se queda de cansaço e o Sol declinando se
esconde em brasa atrás das casas brancas do outro lado do estrada. Fica,
contudo, retido em mim um burburinho – são as cinzas de mais um dia que se
extingue à minha volta.
- O Carlos instalou-se aí. Anteontem desafiei-o para uma volta por
Espanha como é nosso hábito, mas ele respondeu: “Então, não vês que agora sou
um homem casado!” O pobre! Ao serão aproveitámos para pôr as novidades em dia.
Recasado, desejo sinceramente que desta vez a vida lhe sorria. Até porque o trintão
merece não só porque é uma excelente pessoa, como bom trabalhador, equilibrado,
amigo do seu amigo. Tornou para Angola de onde é natural e o que me conta do
que por lá se passa faz lembrar os tempos da PIDE nos idos de Salazar. Reina na
exuberância dos milhões conseguidos não se sabe como, sua excelência a rainha
Isabel dos Santos. Enquanto ela e o seu ilustre soba-pai vivem no reino
maravilhoso do luxo e do exagero, o povo tem os salários com atrasos de seis
meses, as empresas fecham, o petróleo só enriqueceu o rei-soba que se desloca
com mil soldados a protegê-lo deixando na miséria milhões de africanos. Divisas
não há, o trabalho falta, a mendicidade nas ruas é assustadora, os estrangeiros
debandam da capital, a oposição à casa real está na prisão. Enquanto isso, Portugal
aceita os milhões sujos da família imperial africana, que nele investe à tripa-forra o dinheiro surripiado ao povo infeliz e escravo.
- Não dão tréguas os franceses. Cem mil polícias desmotivados estão nas
ruas, mas é mais galopante a fúria e o ódio dos manifestantes que não desarmam.
Apesar das inundações em Paris e em outros pontos da França, os manifestos recrudesceram
e abrangem ainda mais sectores das actividades empresariais. As greves são
tantas que ameaçam paralisar o país por largas semanas se não meses.