sexta-feira, junho 03, 2016

Sexta, 3.
Alterei os horários com a vinda do calor. O que fazia antes de manhã (a escrita), passei a fazer a seguir ao almoço depois das duas horas de leitura. Todavia, por vezes, para aliviar  a pressão, vou lá fora banhar-me da tarde parada, corcovada de calor, esmagada ao peso do silêncio, onde apesar de tudo me sinto bem, com a impressão de que o mundo deixou de existir e eu solitário continuo nas trevas que o cobriam antes de Adão e Eva, quando os deuses e os titãs disputavam a terra. Caminho até ao portão, não no coxear arrebitado do inverno, mas no da procissão do Senhor dos Passos. Este trilho que saboreio escutando o cantar rouco do cuco, serve para desentorpecer a cabeça da escrita, distender os músculos e a vista até aonde o mundo se queda de cansaço e o Sol declinando se esconde em brasa atrás das casas brancas do outro lado do estrada. Fica, contudo, retido em mim um burburinho – são as cinzas de mais um dia que se extingue à minha volta.  

         - O Carlos instalou-se aí. Anteontem desafiei-o para uma volta por Espanha como é nosso hábito, mas ele respondeu: “Então, não vês que agora sou um homem casado!” O pobre! Ao serão aproveitámos para pôr as novidades em dia. Recasado, desejo sinceramente que desta vez a vida lhe sorria. Até porque o trintão merece não só porque é uma excelente pessoa, como bom trabalhador, equilibrado, amigo do seu amigo. Tornou para Angola de onde é natural e o que me conta do que por lá se passa faz lembrar os tempos da PIDE nos idos de Salazar. Reina na exuberância dos milhões conseguidos não se sabe como, sua excelência a rainha Isabel dos Santos. Enquanto ela e o seu ilustre soba-pai vivem no reino maravilhoso do luxo e do exagero, o povo tem os salários com atrasos de seis meses, as empresas fecham, o petróleo só enriqueceu o rei-soba que se desloca com mil soldados a protegê-lo deixando na miséria milhões de africanos. Divisas não há, o trabalho falta, a mendicidade nas ruas é assustadora, os estrangeiros debandam da capital, a oposição à casa real está na prisão. Enquanto isso, Portugal aceita os milhões sujos da família imperial africana, que nele investe à tripa-forra o dinheiro surripiado ao povo infeliz e escravo.


         - Não dão tréguas os franceses. Cem mil polícias desmotivados estão nas ruas, mas é mais galopante a fúria e o ódio dos manifestantes que não desarmam. Apesar das inundações em Paris e em outros pontos da França, os manifestos recrudesceram e abrangem ainda mais sectores das actividades empresariais. As greves são tantas que ameaçam paralisar o país por largas semanas se não meses.