terça-feira, janeiro 05, 2016

Terça, 5.
Tenho a vida presa por estas tagarelices. Ainda não me sinto capaz de refazer Matmatu, embora o tivesse aproximado de mim ao colocá-lo sob o meu olhar na mesa baixa em frente à lareira. Venho abordando alguns amigos no sentido de Madame Juju, quase sempre disfarçando um temor, uma timidez, um desarranjo de confiança. Escrever é sempre um trabalho arrasante, mas construir personagens em torno de centenas de páginas é um desgaste que mesmo uma saúde de ferro não consegue ultrapassar. Bom.

         - Ontem, sob chuva torrencial, fui ao São José e depois ao irmão gémeo o Capuchos. Um pavor! Quem me acode! Antes de entrar no S. José, murmurei uma prece em favor dos artistas que eu conhecia e lá morreram: Urbano Tavares Rodrigues, Al Berto e... De seguida, pensei no infeliz de Santarém que podia estar ainda entre nós não fora a sua vida ter menos valor que um fim-de-semana de um modesto cirurgião. Não vou repetir o que já aqui disse sobre a organização, as instalações, a forma como os doentes são tratados em qualquer dos dois hospitais. Aquilo não parece gente, antes gado visto em manada por médicos que decerto dão o seu melhor, mas fica aquém do mínimo legítimo enquanto seres humanos. A propósito, ouvi esta manhã ao acordar na TSF as declarações do director de serviços do S. José, Carlos Vara Luís, com desfaçatez e um certo orgulho na voz, afirmar que os procedimentos utilizados com o jovem David Duarte foram os correctos em consonância com os padrões internacionais em tais circunstâncias. “Então porque morreu o doente? pergunta, oportuno, o jornalista. Nem precisávamos de ouvir a resposta para compreendermos que se tratou, pura e simplesmente, do abandono dos seus postos de trabalho dos médicos que tinham obrigação de salvar uma vida por todo o mundo reconhecida como sagrada. Como penitência, aconselharia à equipa que se baldou, beijasse diariamente ao entrar ao serviço, o chão onde morreram não só os escritores como os quatro pacientes nos fins-de-semana trágicos.

         - Breves. No corredor ventoso e frio onde me sentei a aguardar que o Dr. Deslandes me chamasse, ouvi um senhor contar a um enfermeiro que tinha ido de urgência ao Hospital de Luz e acrescentou: “Aquilo é uma desgraça, não é melhor que aqui.” Lembrei-me logo da minha própria experiência na mesma unidade hospitalar, daquela madrugada que o Carlos Neto me lá levou, dos meus berros de dor, do material que o supostamente requintado hospital não tinha em reserva, do meu amigo e de uma senhora que na sala de espera escutavam as minhas dores, do que ela me disse quando deixei o gabinete onde fora assistido: “Tive tanta pena de si, estou cheia de medo que hesito em ir-me embora!”

         Já no consultório que no Capuchos é em open space e, portanto, sem nenhuma privacidade, um homem esclarecia o meu oftalmologista, que se tinha feito operar ao olho direito no Verão passado. Ante a surpresa do clínico, ele explicou: “Ó doutor, eu não podia ficar um ano à espera que o hospital tivesse um anestesista.”  

         Na gare de Sete Rios ou Jardim Zoológico ninguém me explica, uma senhora inglesa meteu conversa comigo. Estávamos ambos sentados nos bancos gélidos, em constantes movimentos para escapar às gotas da chuva que vinham da cobertura sem manutenção desde que fora construída, encolhidos de frio e do vento maluco que por ali passava ameaçador, ela aguardando o comboio para Faro eu para Pinhal Novo. Aproveito para desabafar e digo-lhe da miséria do meu país onde as pessoas não são tidas nem achadas para nada. Dou-lhe o exemplo daquela estação, construída há poucos anos e já velha de mais de cem. E, lembrando-me das gares de comboios que Londres possui, do conforto que os passageiros usufruem, da sua beleza, insisto em recordar-lhe a estúpida ideia portuguesa de achar que o clima é quente e, por isso, o povo não precisa de melhores condições arquitecturais. À despedida, ela pergunta-me se sou inglês. Respondo-lhe que sou português e acrescento “infelizmente”. Ela sorri e diz-me: “Não diria. Você tem ar de um gentleman inglês. Não é a primeira pessoa que me diz isso.”

         No Corte Inglês onde entrei à procura de uns calções para a piscina que substituam os que uso há uma data de anos e estão decadentes. Ante um modelo que me agradou, digo para a empregada que me vê hesitante: “Gosto destes, mas não vejo onde possa guardar os ambrósios!” Num raio de um quilómetro, explode uma gargalhada. Fiquei um pouco embaraçado com tanta gente a olhar-me e para me desembaraçar da situação digo a rapariga: “Olhe, pelo menos pus o pagode a rir.” E ela: “Ainda bem. Porque nós aqui temos poucos clientes divertidos como o senhor.”


         Almocei no Adega da Mó onde tenho lugar cativo. Um dos empregados, logo que me vê entrar, aproxima-se, um largo sorriso no rosto redondo: “Bonjour Monsieur.” Já aqui falei dele e da sua paixão pela língua de Voltaire. Portanto, quando lá vou, ele aproveita para  praticar comigo perante os olhares admirativos dos comensais. Rimo-nos muito. Ele ontem contou-me que quando tinha terminado o curso de hotelaria, fora enviado para um hotel na Alemanha. Não sabendo uma palavra de alemão, embora estivesse sob as ordens de dois espanhóis, três meses depois saiu de lá a falar razoavelmente a língua. O francês – acrescenta – é um pouco mais difícil.