Quarta, 13.
Na mortandade do bairro Sultanahmet por onde
eu vaguei algumas vezes, em Istambul, morreram afinal dez pessoas e houve alguns
feridos. Os corpos, em bocados, juncaram a grande praça em frente à Mesquita Azul.
Eu vi ontem na televisão francesa a notícia, mas os corpos estavam cobertos por
uma película que não deixava ver o horror. A mesma imagem, na televisão do
Estado português, apresentava os cadáveres expostos. Duas formas de fazer
jornalismo: uma civilizada, a outra canalha. Em França respeitam os mortos, aqui
servem-se deles para atrair o lado malsão do espectador.
- No Alentejo por onde anda o arcebispo a pregar, um nativo
recomendou-lhe que não esquecesse o que via. Responde-lhe o feirante: “Oh, não!
É por isso que estou aqui a ver.”
- Li com muito interesse a entrevista que Sobrinho Simões deu à revista
Notícia Magazine. Nele o médico e o cidadão fundem-se admiravelmente o que é
raro na classe médica hoje em dia. O especialista do cancro da tiroide, cativa
pela simplicidade humana e pelo rasgo filosófico que acompanha a interligação
entre medicina e praxis. Os médicos que conheço, de uma forma geral, são muito
técnicos e nenhuma das inquietações filosóficas-religiosas lhes interessam. O
tipo que está na sua frente, é uma espécie de material profissional para o qual
olham como se fosse um parafuso que devesse entrar num orifício qualquer. Estão
padronizados, formatados, para responderem ao gemido e calá-lo se possível for
para sempre. Esquecem-se que aquele gemido é causa e efeito de algo que está
para lá do doente enquanto corpóreo de estudo. Basta ouvi-los nas consultas.
Outro dia, no Capuchos, um médico que actuava no cubículo ao lado do Dr.
Deslandes onde eu estava, ouvindo-me falar, veio perguntar-me o que tomava.
Respondi-lhe que não tomo nada. Ele, olhando-me com espanto: “Como assim! Você
não toma nenhum medicamento! Nem para o colesterol!?” Vi nos seus olhos a estupefacção:
“Mas este tipo não toma droga nenhuma! Deve estar a gozar ou então muito
doente!” Passada a surpresa, falámos um pouco. Eu disse-lhe que as doenças são
criadas por aquilo que ingerimos. Ele não parecia de acordo e atirou: “Muitas
são genéticas”, respondeu, triunfante. Disse eu: “Sim, mas não a 100 por cento.
Isso é verdade –aquiesceu ele.” Despedimo-nos com um largo sorriso de orelha a
orelha.
- Assim que os dias abrem a luz que inunda e aquece a terra, eu, qual
lagartixa, exponho-me ao sol depois do almoço para duas horas de leitura. São
os momentos mais esperados e os mais felizes da minha jornada. Não tenho
palavras para os descrever e todo o vocabulário português é insuficiente para
dizer do espanto e admiração, da profunda comunhão e do abismo de consolo que
me invade. O mundo lá fora, com o seu cerco de horrores e aldrabices que o
manipula, não chega ao portão onde os pássaros saltam de ramo em ramo e onde o
silêncio suspenso da tarde fecha a harmonia entre mim e os meus autores.
- Antes gloriosa meia-hora na piscina sem vivalma. Até os empregados
debandaram e assim pude nadar sem entraves, o sol entrando fazendo na água imensos
desenhos animados que lampejavam à minha passagem. Glória! Glória!