Segunda, 9.
Às vezes dá-me para tomar café enquanto
leio o jornal num desses espaços abertos à entrada dos supermercados que são a
fantasia, o júbilo, o lugar de encontro da melhor sociedade de hoje, a mesma
que eu via quando aqui cheguei a esgravatar na terra, a plantar batatas, a
retirar dos solos o escalracho, em ranchos alegres de negro vestidas. Estas ladies, distribuídas pelas mesas em
cavaqueira fútil e altissonante, orgulhosamente aperaltadas com as roupas do
Lidl das quintas-feiras, tomam conta de tudo e exigem ser tratadas como damas
da mais alta sociedade dos arrabaldes de Lisboa. É ver o olhar invejoso como
observam os trapinhos que cada uma realça em corpos baixotes e arredondados de
banha que em gomos ternos balança quando andam e jaz depois abatida quando abancam
nas mesas para um suculento pequeno-almoço. Miram-se e tornam-se a mirar com
aquela mágica impressão de pertencerem a um mundo sem igual, feito das peças
rasgadas de um passado que a crise ameaça voltar, mas que elas apartam em trejeitos
de varinas de folga ao domingo. Nunca aparecem acompanhadas dos maridos, como
se naqueles momentos só delas não coubesse o atrasado mental do companheiro.
Sentam-se gaiteiras em grupos, felizes e importantes, saias travadas e pernas
abertas, mirando quem entra do alto dos seus olhos pintados à troche moche,
algumas de cigarro nos dedos gretados, todas tão altaneiras como se fossem as
rainhas de um harém incendiado de importância.
- A propósito. Em conversa fiada com um rapaz diplomado que trabalha na
caixa de Jumbo de Setúbal, soube que cada um dos empregados faz em oito horas
de trabalho dez mil euros de receita. Nas épocas especiais chegam a fazer o
dobro. Tanto ele como os companheiros, auferem um pouco mais que o salário
mínimo.
- Em dias como estes de frio intenso, pelas oito e meia da manhã, sento-me
à mesa de trabalho e avanço no romance. Não quero perder tempo a carregar lenha
para casa e, por isso, estando muito tempo imobilizado, cubro-me de mantas: uma
nas pernas, outra nos ombros, um boné na cabeça. Assim agasalhado, pareço um
desses escribas da Idade Média atormentados a olhar a página de pergaminho, o
pensamento vagando por horizontes tão distantes que não tocam a terra trespassada
do frio ancestral dos tempos sombrios.
- Sábado passado sentei-me numa esplanada com a Luísa e o António. Este
tinha consigo o Expresso coisa que não leio há vários e felizes anos. À baila
veio de novo o caso Charlie Hebdo. António cuspiu o seu amor à liberdade de
imprensa o que eu compreendo trabalhando ele no Público. Também fui jornalista
e sei quanto sofri quando vi artigos meus cortados com o lápis azul da PIDE nas
suas duas formas – Salazar e Caetano. Disse que defendo essa liberdade, mas
também acho que ela não deve pôr em causa os valores supremos dos outros.
Contra-ataca António com o direito de defesa através dos tribunais. Contradigo
eu que se o cidadão do século XXI ficar à espera de ter julgamento digno, bem
pode esperar sentado, porque entretanto acusado ou inocente foi sentenciado e
condenado na praça pública por um jornalismo que tem no quanto pior melhor a
sua actividade. No caso presente, quem estaria disposto internacionalmente a
ouvir os povos que tiveram milhares e milhares de mortos, cidades destruídas,
países invadidos, vidas desfeitas às mãos do fanatismo eleitoralista, da falsa
democracia, dos princípios que só são válidos para um dos lados. Claro que
aquilo que os bárbaros da Daesh fazem é repugnante, mas não é menos verdade que
os jornalistas do jornal BD puseram-se a jeito, tendo sido prevenidos e
insistindo em pôr Maomé a ser sodomizado. E quem diz Maomé, diz outras figuras
sagradas da religião católica, por exemplo.