segunda-feira, fevereiro 09, 2015

Segunda, 9.
Às vezes dá-me para tomar café enquanto leio o jornal num desses espaços abertos à entrada dos supermercados que são a fantasia, o júbilo, o lugar de encontro da melhor sociedade de hoje, a mesma que eu via quando aqui cheguei a esgravatar na terra, a plantar batatas, a retirar dos solos o escalracho, em ranchos alegres de negro vestidas. Estas ladies, distribuídas pelas mesas em cavaqueira fútil e altissonante, orgulhosamente aperaltadas com as roupas do Lidl das quintas-feiras, tomam conta de tudo e exigem ser tratadas como damas da mais alta sociedade dos arrabaldes de Lisboa. É ver o olhar invejoso como observam os trapinhos que cada uma realça em corpos baixotes e arredondados de banha que em gomos ternos balança quando andam e jaz depois abatida quando abancam nas mesas para um suculento pequeno-almoço. Miram-se e tornam-se a mirar com aquela mágica impressão de pertencerem a um mundo sem igual, feito das peças rasgadas de um passado que a crise ameaça voltar, mas que elas apartam em trejeitos de varinas de folga ao domingo. Nunca aparecem acompanhadas dos maridos, como se naqueles momentos só delas não coubesse o atrasado mental do companheiro. Sentam-se gaiteiras em grupos, felizes e importantes, saias travadas e pernas abertas, mirando quem entra do alto dos seus olhos pintados à troche moche, algumas de cigarro nos dedos gretados, todas tão altaneiras como se fossem as rainhas de um harém incendiado de importância.

         - A propósito. Em conversa fiada com um rapaz diplomado que trabalha na caixa de Jumbo de Setúbal, soube que cada um dos empregados faz em oito horas de trabalho dez mil euros de receita. Nas épocas especiais chegam a fazer o dobro. Tanto ele como os companheiros, auferem um pouco mais que o salário mínimo.

         - Em dias como estes de frio intenso, pelas oito e meia da manhã, sento-me à mesa de trabalho e avanço no romance. Não quero perder tempo a carregar lenha para casa e, por isso, estando muito tempo imobilizado, cubro-me de mantas: uma nas pernas, outra nos ombros, um boné na cabeça. Assim agasalhado, pareço um desses escribas da Idade Média atormentados a olhar a página de pergaminho, o pensamento vagando por horizontes tão distantes que não tocam a terra trespassada do frio ancestral dos tempos sombrios.


         - Sábado passado sentei-me numa esplanada com a Luísa e o António. Este tinha consigo o Expresso coisa que não leio há vários e felizes anos. À baila veio de novo o caso Charlie Hebdo. António cuspiu o seu amor à liberdade de imprensa o que eu compreendo trabalhando ele no Público. Também fui jornalista e sei quanto sofri quando vi artigos meus cortados com o lápis azul da PIDE nas suas duas formas – Salazar e Caetano. Disse que defendo essa liberdade, mas também acho que ela não deve pôr em causa os valores supremos dos outros. Contra-ataca António com o direito de defesa através dos tribunais. Contradigo eu que se o cidadão do século XXI ficar à espera de ter julgamento digno, bem pode esperar sentado, porque entretanto acusado ou inocente foi sentenciado e condenado na praça pública por um jornalismo que tem no quanto pior melhor a sua actividade. No caso presente, quem estaria disposto internacionalmente a ouvir os povos que tiveram milhares e milhares de mortos, cidades destruídas, países invadidos, vidas desfeitas às mãos do fanatismo eleitoralista, da falsa democracia, dos princípios que só são válidos para um dos lados. Claro que aquilo que os bárbaros da Daesh fazem é repugnante, mas não é menos verdade que os jornalistas do jornal BD puseram-se a jeito, tendo sido prevenidos e insistindo em pôr Maomé a ser sodomizado. E quem diz Maomé, diz outras figuras sagradas da religião católica, por exemplo.