Segunda, 23.
Pelas quatro e meia da madrugada, acordo
num reboliço mental. Do sonho estranho de uma nitidez impressionante sobressaía
com insistência estas palavras: Corpo do Meu
Corpo. Depois de me ter debatido por algum tempo entre a vigília e o sono,
decido levantar-me para anotar num pequeno bloco que tenho à cabeceira da cama
tudo o que tinha vindo ao meu encontro durante a noite. A cena passava-se no
Terreiro do Paço, dentro de um eléctrico que fora tomado de assalto por um
homem encapuzado que depressa reconhecera um passageiro que estava sentado a
meio da carruagem e que era eu. Ele diz-me, ameaçador, que tinha lido a
entrevista que eu havia dado ao jornal Público nesse dia e começou a debitar
uma série de impropérios contra mim. Nesse entretanto, a polícia que tinha sido
avisada, cerca o transporte com mais uns quantos passageiros reféns.
Negociações iniciam-se durante as quais o sujeito liberta todos os passageiros
menos eu. Encurtando. Umas horas depois, o terrorista (não gosto da
qualificação e evito-a sempre) enceta comigo um diálogo filosófico sobre a
existência de Deus e cita algumas frases de livros meus. Lá fora as pessoas que
assistem à cena são afastadas para lá da estátua de D. José, num perímetro de
vários metros. Apercebo-me a dada altura que cresceu o ímpeto violento do homem
e eu que até ali tinha estado calmo e dialogante, entro em stresse e tento
levantar-me do banco. Sou atirado prontamente para o chão onde fico magoado e a
sangrar da cabeça devido ao embate num banco. A noite aproximara-se, a polícia
de choque que substituíra a PSP tenta convencer o assaltante a sair sem me
molestar. O que acontece de madrugada comigo por escudo (talvez daí corpo do meu
corpo). Como ele era mais alto do que eu, assim que a porta do eléctrico abre,
um atirador certeiro atingi-o na cabeça e o rapaz cai à minha frente inanimado.
Acordo nesse momento, mas ainda a tempo de saber que o tiro não fora da
polícia, mas de um cúmplice que na realidade também tinha estado dentro do
eléctrico. Apercebo-me já desperto do que tenho de fazer com o sonho. Tento
conciliar de novo no sono, mas o meu cérebro partiu a galope a escrever páginas e páginas desta
história com todos os ingredientes imortais. São 11,22 da manhã e, não obstante
a concentração necessária ao antepenúltimo capítulo do romance que estou a
acabar ser indispensável, é no Corpo do Meu
Corpo que penso sem descanso numa escrita mental que se sobrepõe e atropela
esta em que trabalho há dois anos e meio.