Quarta, 25.
A exposição que está no Museu Nacional de
História Natural e da Ciência que tanto encantou Thomas Mann quando passou por
Lisboa no início do século XX, com o título aterrador Antómato Vivo? e o subtítulo A
vida, um artefacto natural deixou-me petrificado. Devo, contudo, afirmar que
o que subjaz nela ou está implícito é muito mais fecundo e interessante que a
exposição ela mesma, quero dizer os objectos que supostamente ajudam à sua
compreensão e o modo como foram expostos. Sobretudo quando folheamos o catálogo,
com uma série de textos de grande qualidade para o que nos propõem os curadores
(agora é assim que se diz, valha-nos Deus!) Manuel Valente Alves e Adelino
Cardoso. Quando digo que saí de orelhas baixas e coração tremeliques, foi
porque o que os trabalhos de uns quantos artistas e alguns médicos e filósofos
que nela participam, são muito claros quanto ao futuro que nos espera. E este,
se por um lado pode ser radiante, por outro vai de certeza mergulhar o homem
numa nova era de trevas. A ideia de que o corpo humano é um artificium vem de muito longe, dos
gregos, mas foi a partir do século XVII que ele se vai transformar para alguns um
produto artístico. Um dos mais citados, é Leonardo da Vinci com os seus
desenhos de um realismo impressionante, que dissecam o corpo humano não apenas
a parte visível, mas sobretudo a invisível, quero dizer interior. Ele antecipa
de algum modo as pesquisas e a inquietação dos tempos presentes – medicina
molecular, engenharia genética e biológica, até ao assustador Haldane, um americano
arrogante defensor do que designa de ectogénese, isto é, o nascimento fora do
ventre materno - estes muito mais assustadores que as práticas eugénicas como princípio
traçadas por Adolfo Hitler. A filosofia foi muito apropriadamente para ali
chamada, quando é invocado René Descartes como o primeiro que criou o mecanismo
enquanto “explicação” do Universo pelos corpúsculos ínfimos, os conhecidos minina naturalia, como assinala Manuel
Silvério Marques quando esclarece que eles são “interação mecânica entre átomos
químicos e, portanto, pelas leis da matéria em movimento”. Mas também Kant, e
Leibniz têm uma palavra a dizer. Contudo, o ponto de interrogação que é feito
no tema apresentado, não é nada apaziguador. Mesmo quando alguns
investigadores, médicos e cientistas, querem ver arte no contributo gerado pela
natureza. The great contribution of the
early modern period to the discussion about automata was therefore the reversal
of the time-honoured analogy between nature and art. E depois conclui: After Descastes had equated nature with
mechanism, sel-motion lost its original link with spontaneous activity and
became a purely mechanical process, while nature could be explained as a
sucession of physical actions ruled by a causal nexus. (Guido Giglioni in Automaton,
or the human dream on life and freedom). Todavia, o ponto crucial e a mais aterradora
interrogação, aquela que nos arrepia e nos põe a pensar, reside no que se
apresenta ao homem com a série sucessiva de descobertas: ADN, em 1953 mais o
aparecimento da medicina molecular, da engenharia genética, da clonagem humana
e da sequenciação do genoma humano, concluída em 2007. Adelino Cardoso e
Valente Alves levantam o véu e erguem o pavor servindo-se de Hans Jonas um
biólogo quando afirma “o homem transforma-se em objecto directo, como sujeito
da mestria da engenharia biológica” e acrescentam “tal representa uma ruptura
metafísica com consequências impossíveis de determinar, que por seu turno
levanta uma nova questão: a oposição entre reversibilidade e irreversibilidade”,
por uma razão muito clara e evidente, na construção mecânica tudo é reversível,
na engenharia biológica as suas acções são irreversíveis. Aqui chegado, com o
coração cheio de palpitações, pergunto o que nos espera, e se tem alguma
importância a ideia da identidade, do património do lugar, da pátria sem falar
no que dela dizia Brunschvicg no principio do século XX. Um autómato vivo é um
tipo especial de máquina? Perguntam os que se ocuparam da exposição, dando todo
o sentido à mesma e transformando-a numa espécie de antevisão do homem do
futuro. Como conclusão, vou citar Viriato Soromenho-Marques que tão bem
equaciona o problema falando deste nosso século XXI e no projecto que nos
oferecem: A hipótese de que passámos da
exploração das possibilidades de mudança por aperfeiçoamento simples no
software que nos foi dado pela Criação, para a revolução radical no próprio
hardware das criaturas que somos; corremos o risco de estar a passar dum
paradigma ético para um paradigma genético no que concerne ao projecto de
desenvolvimento histórico da condição humana; corremos o risco de transitar do
imperativo categórico para as biotécnicas centradas na manipulação do nosso
código de barras biológico. E noutra altura: a total ausência de pensamento crítico sobre os limites técnicos e
transcendentais do conhecimento e da acção, assume-se não como um
anti-humanismo, mas sim como a realização extrema do híper-humanismo fáustico,
um “tipo humano” guiada por uma vaga noção de infinito e ilimitado, para quem a
humanidade, os seres orgânicos e inorgânicos, e a mais secreta estrutura
ontológica do “mundo” são meras peças de uma desmesurada fabricação de si
mesmo, para si mesmo. Assino de cruz.
A ilustrar tudo quanto escrevi, uma peça em mármore, um maravilhoso Ícaro
não podendo com o peso das asas que o escultor José Esteves lhe colocou,
oferece um semblante de dor que me deixou imobilizado por muito tempo a admirar
a beleza da escultura. Num outro sentido, o mesmo Ícaro visto pelo pintor
Fernando Quintas, prémio europeu para jovens artistas, e que eu tenho no hall
dos quartos aqui em casa.
O Ícaro sofredor de José Esteves |
O Ícaro esplendoroso de Fernando Quintas |