Quarta, 11.
A mim dá-me para considerar a exposição
dos Sonnabend que visitei ontem no museu Arpad Szenes/Vieira da Silva como a
exposição do adolescente português que eles adoptaram e é hoje um senhor de
setenta e cinco anos fascinante. Alguma da pintura já a tinha visto em Paris,
mas desconhecia que era um luso da melhor cepa que estava nas traseiras de um
mundo de vanguarda onde a monotonia do dinheiro não tinha lugar. Ileana e o
marido Michel Sonnabend, desde a sua origem, sempre se interessaram por
artistas desconhecidos, o importante era que a sua obra os interpelasse.
Durante anos viveram entre Paris e Nova Iorque, Veneza e Munique tratando de
dar a conhecer os artistas americanos na Europa e os desta na América. Viram
nascer a Pop Art, a Minimal Art, as performances, a arte conceptual e passo. António Homem, durante
largos anos e até à morte do casal, acompanha essa efervescência artística,
esse olhar toldado pela embriaguez da arte abstracta, marcha a seu lado pelos
caminhos subterrâneos que levam à descoberta das cintilações que abrilhantam de
interrogações a vida e tornam arte testemunha e conivente. Os nomes obscuros
que há décadas não passavam de jovens atraídos pela rebeldia que põe a dúvida nos
píncaros do descrédito, eram os que possuíam o princípio e as inclinações e o
interesse no trabalho realizado. Assim a colecção foi crescendo, os artistas
foram-se tornando célebres, e a morte levou o casal americano apaixonado pela
pintura, escultura, instalações e todo o imenso sucedâneo que hoje está ligado
à arte enquanto expressão de grande coisa e de coisa nenhuma. António Homem
herda uma boa parte desse fabuloso espólio e teve a feliz ideia de a dar a
conhecer ao público português inculto e iletrado que ontem apenas uma senhora
ao meu lado o representou durante a hora que passei no museu.
- Evidentemente nem tudo me agradou. Tendo pouco ou nenhum apetite por
carne, pousei um olhar enjoado no naco de porco e na travessa de salmão com
mostarda que encontrei no caminho, nas latas e nos produtos de supermercado de
Andy Warhol que um qualquer publicitário com talento faz melhor, assim como o
artista como testemunham algumas telas que vi noutras ocasiões e lugares e
abonam os dois retratos a óleo de Ileana ali presentes, não fora o seu
devorador apetite por dinheiro e fama que finalmente acabaram por o perder no
final da vida. Mas travei o passo ante as litografias de Robert Rauschenberg
como se lê-se um diário da América em tons sombrios e cheios de presença. Como
apreciei o trabalho de Michelangelo Pistoletto explorando o espelho que nos
remete para nós mesmos, enquanto nos interroga como no caso daquela grande
superfície gélida com uma garrafa ao canto. Ou ainda Roy Lichtenstein com a
série de quadros a tinta da China divertidos, a respirar saúde e alegria de
viver. Ou a magnífica cabeça em gesso de
Sennabend da autoria de George Segal, de uma luminosidade interior incrível,
estampada de serenidade, inteligência, bondade.
- Sou dos que cedo frequento a Fundação. Por isso, sempre que a
oportunidade surge, não deixo de rever a obra do casal Vieira da Silva e Arpad
Szenes. Há sempre telas que mudam, que vêm dos fundos das reservas, daqui e
dali. Dos dois devo confessar que gosto mais de Arpad. A infância e inocência
estão intactas em qualquer das suas obras maravilhosas salvo, para minha
tristeza, por volta de 1956 quando o artista se meteu pelos obscuros e
impenetráveis novelos da mulher. Arpad é mais fresco, mais altivo na
profundidade, mais intenso à resistência de traduzir o fluxo criativo em
matéria abstracta. Por isso, foi com deslumbre e deleite que estive muito tempo
a admirar, a viajar, pelo mundo sagrado de um ser que irradiava alegria e uma incomensurável
corrente de vida.
- Desci
a pé das Amoreiras, sob chuva constante, à Praça do Comércio, com paragem no Rossio
onde entrei no vetusto café Suíça não tanto para tomar um chá e uma torrada,
mas para levantar um pensamento a tia Dália que até ao derradeiro dia da sua
vida ali ia religiosamente de segunda a sexta lanchar com as amigas e ficar à
conversa pela tarde. Ela e a filha Nani, ambas muito janotas, trocando de roupa
todos os dias para o cerimonial que não dispensavam e fazia parte do seu
dia-a-dia. Às vezes ia lá ter e depois do chá trazia-as para casa. Foi trancado
nesse mundo cuja saudade não esmorece, que depois continuei até ao Terreiro do
Paço, tomei o catamarã, o comboio, o carro e entrei na quinta revigorado de bem-aventurança.