quarta-feira, fevereiro 11, 2015

Quarta, 11.
A mim dá-me para considerar a exposição dos Sonnabend que visitei ontem no museu Arpad Szenes/Vieira da Silva como a exposição do adolescente português que eles adoptaram e é hoje um senhor de setenta e cinco anos fascinante. Alguma da pintura já a tinha visto em Paris, mas desconhecia que era um luso da melhor cepa que estava nas traseiras de um mundo de vanguarda onde a monotonia do dinheiro não tinha lugar. Ileana e o marido Michel Sonnabend, desde a sua origem, sempre se interessaram por artistas desconhecidos, o importante era que a sua obra os interpelasse. Durante anos viveram entre Paris e Nova Iorque, Veneza e Munique tratando de dar a conhecer os artistas americanos na Europa e os desta na América. Viram nascer a Pop Art, a Minimal Art, as performances, a arte conceptual e passo. António Homem, durante largos anos e até à morte do casal, acompanha essa efervescência artística, esse olhar toldado pela embriaguez da arte abstracta, marcha a seu lado pelos caminhos subterrâneos que levam à descoberta das cintilações que abrilhantam de interrogações a vida e tornam arte testemunha e conivente. Os nomes obscuros que há décadas não passavam de jovens atraídos pela rebeldia que põe a dúvida nos píncaros do descrédito, eram os que possuíam o princípio e as inclinações e o interesse no trabalho realizado. Assim a colecção foi crescendo, os artistas foram-se tornando célebres, e a morte levou o casal americano apaixonado pela pintura, escultura, instalações e todo o imenso sucedâneo que hoje está ligado à arte enquanto expressão de grande coisa e de coisa nenhuma. António Homem herda uma boa parte desse fabuloso espólio e teve a feliz ideia de a dar a conhecer ao público português inculto e iletrado que ontem apenas uma senhora ao meu lado o representou durante a hora que passei no museu.

         - Evidentemente nem tudo me agradou. Tendo pouco ou nenhum apetite por carne, pousei um olhar enjoado no naco de porco e na travessa de salmão com mostarda que encontrei no caminho, nas latas e nos produtos de supermercado de Andy Warhol que um qualquer publicitário com talento faz melhor, assim como o artista como testemunham algumas telas que vi noutras ocasiões e lugares e abonam os dois retratos a óleo de Ileana ali presentes, não fora o seu devorador apetite por dinheiro e fama que finalmente acabaram por o perder no final da vida. Mas travei o passo ante as litografias de Robert Rauschenberg como se lê-se um diário da América em tons sombrios e cheios de presença. Como apreciei o trabalho de Michelangelo Pistoletto explorando o espelho que nos remete para nós mesmos, enquanto nos interroga como no caso daquela grande superfície gélida com uma garrafa ao canto. Ou ainda Roy Lichtenstein com a série de quadros a tinta da China divertidos, a respirar saúde e alegria de viver.  Ou a magnífica cabeça em gesso de Sennabend da autoria de George Segal, de uma luminosidade interior incrível, estampada de serenidade, inteligência, bondade.

         - Sou dos que cedo frequento a Fundação. Por isso, sempre que a oportunidade surge, não deixo de rever a obra do casal Vieira da Silva e Arpad Szenes. Há sempre telas que mudam, que vêm dos fundos das reservas, daqui e dali. Dos dois devo confessar que gosto mais de Arpad. A infância e inocência estão intactas em qualquer das suas obras maravilhosas salvo, para minha tristeza, por volta de 1956 quando o artista se meteu pelos obscuros e impenetráveis novelos da mulher. Arpad é mais fresco, mais altivo na profundidade, mais intenso à resistência de traduzir o fluxo criativo em matéria abstracta. Por isso, foi com deslumbre e deleite que estive muito tempo a admirar, a viajar, pelo mundo sagrado de um ser que irradiava alegria e uma incomensurável corrente de vida.

         - Desci a pé das Amoreiras, sob chuva constante, à Praça do Comércio, com paragem no Rossio onde entrei no vetusto café Suíça não tanto para tomar um chá e uma torrada, mas para levantar um pensamento a tia Dália que até ao derradeiro dia da sua vida ali ia religiosamente de segunda a sexta lanchar com as amigas e ficar à conversa pela tarde. Ela e a filha Nani, ambas muito janotas, trocando de roupa todos os dias para o cerimonial que não dispensavam e fazia parte do seu dia-a-dia. Às vezes ia lá ter e depois do chá trazia-as para casa. Foi trancado nesse mundo cuja saudade não esmorece, que depois continuei até ao Terreiro do Paço, tomei o catamarã, o comboio, o carro e entrei na quinta revigorado de bem-aventurança.