quinta-feira, outubro 27, 2022

Quinta, 27.

Aqui nem “uma agulha bulia na quieta melancolia dos pinheiros do caminho”. Estranhamente, como a apalpar terreno incerto, entrei no romance. Não propriamente para avançar, mas para terminar as correcções até à página 40. Regozijei. Eu que há tanto tempo ando de costas voltadas à impregnação do meu viver, desviado dele por múltiplas razões apartadas da única realidade que me sustem e confere equidade ao meu existir.

         - Todavia, felizmente, o amor à leitura não esmorece, a curiosidade está intacta e a entrega ao trabalho no silêncio das tardes e das noites é actividade diária. A ela consagro pelo menos ao todo umas três horas. Sem o mergulho na filosofia, na teologia e agora no quotidiano amoroso de Virginia e Vita, cujas cartas leio deliciado não tanto pela troca de sensações lésbicas, mas pela avalanche de sentimentos que duas escritoras notáveis transportam de um coração para o outro. Não vem à tona os momentos íntimos, não estamos ainda na vulgaridade literária dos nossos dias, que autores os usam como roleta mágica de encher o olho aos leitores, a propósito e, sobretudo, a despropósito; pelo contrário, entre elas, difunde-se um certo resguardo, uma pudícia nos interstícios dos desejos reservados aos momentos íntimos e aos sopros que à distância enfunam e dão consistência à relação. Por vezes, dou comigo a pensar em Julien Green, em Paris, nos anos desvairados entre as duas grandes guerras. Que diferença na vivência do corpo! Green era sexual, carnal, possessivo, utilizava e abusava das suas vítimas; Virginia é sentimental, cerebral, submissa, terna ante aquela máquina devoradora que é Vita Sackville-West ou antes Orlando. Pouco se sabe do pensam os respectivos maridos. Raramente são mencionados e, no caso de Vita, os filhos espreitam pela nesga da página e desaparecem. Como se antes de tudo e de todos, a liberdade ganhasse os corações e fosse o grão que dá alento ao consentimento da felicidade que em certas pessoas não se confina a padrões sociais e religiosos. Porque não é só o corpo que a reclama, é a imanência do ser enquanto construção inacabada do todo.  

         - Trouxe aqui outro dia uma missiva de Vita, dou a conhecer agora uma de Virginia numa altura em que a relação entre ambas rasgou os espaços sociais para se estabelecer na fragilidade amorosa que norteia o casal, este ou qualquer outro. Dou, contudo, primeiro a palavra a Vita:

Ia para Sevenoaks, para ir buscar os rapazes (os filhos), quando vi a bicicleta encarnada do carteiro encostada à caixa do correio da aldeia, perguntei: “Há cartas para Long Barn?” Havia. Entre elas um envelope escrito à máquina que continha uma carta tua. Senti-me enrubescer de raiva ao lê-la. Não estou a exagerar. Desconhecia que era tão ciosa de ti. Quem é o teu maldito homem de nariz aquilino? Ouve bem, eu importo-me mesmo. Mas, se é esse o caso, tenho na minha mesa uma carta do mesmo género – à qual ainda não respondi. O tipo de resposta que darei depende de ti. Olha que não estou a brincar. Se não fores prudente, envolves-me numa relação que me aborrecerá terrivelmente. Por outro lado, se te portares bem, mando às urtigas quem me escreveu. Mas não permito que façam pouco de mim. Falo a sério.”

A resposta à ciumenta, vem mais tarde na escrita telegráfica de Virginia:

Posso ir no sábado passar a noite contigo? – parece-me ser a única possibilidade. Responde-me... Dirias que gostas de mim, se eu te telefonasse a perguntar?

Se nos víssemos, beijavas-me? Se eu estivesse na cama, tu ...

Esta noite estou muito excitada com Orlando: tenho estado junto à lareira a escrever o último capítulo. (Romance baseado na relação entre as duas.) 

         - Não devia conspurcar estas páginas com o anúncio e prisão de mais um honesto socialista pela PJ Sr. Orlando Costa, presidente da Câmara de Montalegre. Ele e mais outros capangas estão indiciados pela prática de crimes de associação criminosa, recebimento indevido de vantagem, falsificação de documentos, abuso de poder e participação económica em negócio (ufa! Até me doem os dedos! O homem esgotou o dicionário dos crimes!). E ainda a missa vai no adro. O que nos esperará quando os senhores do partido que o povo deu a maioria, deixarem o poder!