terça-feira, outubro 26, 2021

Terça, 26.

Para falar do meu caro Becker devo dizer que ele me deixou de importunar. Nos primeiros dias aceitei o medicamento químico que o Robert me deu à base de diclofénac de diéthylamine, uma porcaria de anti-inflamatório potente que nada fez. Depois lembrei-me de ir à farmácia de la Defense como acima expliquei e em três dias a dor foi-se e o sujeito deixou de me ralar, tendo até reduzido substancialmente. Este produto, é à base de extractos de plantas, óleos e cânfora. Caminho agora, já desde Strasbourg, sem problemas. 

         - Paris. Apenas chegado, os meus amigos levaram-me a conhecer uma pequena cidade perto daqui, banhada por assim dizer por água, no centro da qual existe o Lac de Enghien les Bains. Trata-se de uma zona termal, com hotéis sumptuosos, arquitectura ao jeito da Normandie, um cheiro a abastança e a férias permanentes, local de gente rica onde um perfume de desengano desliza pelas ruas em torno do lago, muito arvoredo e cantos umbrosos. Percorremos pela margem toda a massa de água que rumina ao entardecer quando as ruas e os edifícios se iluminam e por todo o lado desce uma fagulha de mistério que nos abastece de dúvidas ante os olhares que se cruzam connosco num convite à valsa. No meio da malha arquitectónica, surgem espaços de um modernismo fantasioso, como o teatro local metido num aquário de vidro. Lugar de veraneio, paisible, nem por isso a actividade hoteleira desce e são muitos os empregados fardados que avistamos nas ruas exibindo com denodo os logos das jaquetas escuras.  

O teatro e o casino metidos dentro de um aquário de vidro

         - O ser humano a tudo se habitua salvo à ausência de liberdade. Estou a pensar no modo como me vou acostumando à presença do coronavírus. A princípio tinha receio e instalava entre mim e os outros uma certa distância; depois, como os mais próximos se aproximavam eu não recuava por educação e não querer melindrar, esquecia o sujeito e tentava viver como se a praga nunca tivesse existido. Por exemplo, há minutos, tendo entrado no metro empurrado por uma chusma de passageiros, acabei por ir na enxurrada pedindo ao Senhor que me protegesse. Dentro da carruagem não havia nenhuma forma de defesa e, embora todos usassem máscara, o número deles que tossiam era assustador. É para mim claro que a gripe deve acampar em breve não só nos pulmões dos franceses, como no pavor que se propagará por toda a cidade. O Lionel, director de serviço no hospital, tosse e fuma como se ignorasse o perigo. Ao meu lado, vi-o com várias crises e não pude afastar-me porque estávamos no restaurante onde ele me quis obsequiar com um excelente jantar. Pensando bem, é a necessidade da vida tout court que nos expõe e ao fazê-lo nos convida a continuar na senda do nosso quotidiano comum. A doença e a morte é mera consequência de estarmos vivos.  

         - Desci a Saint Michel pela manhã para me consagrar aos meus queridos livros. Rendido ao peso restrito de 15 quilos, abstenho-me de tentações e confino-me ao essencial. Mesmo assim, a minha mochila trazia peso bastante para me reter num pequeno bistro a folhear as compras e antever as horas solitárias de leitura. Tempo moche