quarta-feira, outubro 20, 2021

Quarta, 20.

É a primeira vez que começo um livro pelo fim. Neste caso trata-se de Todo es Nada que figura como apêndice no segundo volume do Diário de Green. O título é tirado da obra de Santa Teresa d´Ávila, O livro da Vida: “tudo é nada e menos que nada, o que finda e acaba e não satisfaz a Deus.” Foi escrito entre Junho de 1941 e Fevereiro de 1944 quando o escritor estava nos EUA fugido da II Grande Guerra. Trata-se de uma espécie de Diário Espiritual onde o autor, a par do dia-a-dia corrente, ajusta contas com a sua natureza sensual tendo como destinatário o próprio Deus. Como eu suspeitava, ele vai a pouco e pouco transformar a sua vida de modo a ficar cada vez mais perto do Senhor. Toda vagabundagem do passado, o imenso número de rapazes que o satisfizeram, a vida dissoluta que fora a sua entre os 20 e os 40 anos, passaram ao exílio sob custódia de um pensamento de recusa, uma vontade de transformar a sua vida de modo a abraçar as altas cumeeiras do espírito e nelas permanecer para o resto da sua existência que foi de noventa e oito anos tendo nascido com o século. “Dieu veut obtenir de nous-mêmes le renoncement absolu aux plaisirs physiques, parce que ces plaisirs constituent un obstacle insurmontable à la vie d´union.” (pág. 984).    

         - Sobre a mesa de apoio, face à lareira, deixei o Journal de Guerre de Paul Morand, um calhamaço de 1.040 páginas, tão pesado que só o consigo ler sobre os joelhos ou no tampo da mesa, inteiramente consagrado aos jogos da Segunda Grande Guerra. Comecei a lê-lo em Julho e ainda vou na página 640 não sendo exclusivo de leitura. O que me surpreende é a descoberta de que mesmo em tempo de guerra ser político é o melhor que pode acontecer aos ambiciosos. Morand, como já disse, esteve do lado errado da História mas, ao ler a vidinha que ele e outros levaram no tempo da França ocupada que o ditador Pétain sustentou, eles prosseguiram o carrossel de almoçaradas e jantaradas, festas privadas e viagens, compras de terrenos e arte por preços que só eles, mantendo o salário em dia, podiam dar-se ao luxo de adquirir. Isto enquanto a França agrícola morria de fome, obrigada a trabalhar para os alemães; os agricultores tratados abaixo de cão, muitos suicidaram-se e o termo paysan como eram tratados com desprezo, só muito recentemente foi banido do vocabulário corrente.          

         Li também 17 Cartas Sem Moral Nenhuma de M. Teixeira Gomes, que o antigo Presidente da República (1923-1925) dirigiu ao amigo Luiz Botelho, numa edição de 1934. Que português magnífico, que controlo da língua sem deixar de continuamente a descobrir, inventar, tratar, que espírito livre num tempo pouco convidativo. Sem esconder a sua tendência que hoje chamaríamos pedófila, não tapa os olhos ante as realidades da sensualidade que se lhe ofereciam. Da uranismo às raparigas de tenra idade que lhe calharam em sorte. Estes aspectos livremente contados quando da sua viagem à Madeira, são exemplo. Aliás, segundo julgo saber, acabou por casar pró tarde com uma rapariga quase imberbe sendo ele homem de meia idade. 

         - Acordei um pouco tarde. Primeiro, porque me tinha deitado por volta da uma da madrugada a devorar o Diário de Green; segundo, porque, os mosquitos no início e o traiçoeiro Becker no adiantado da noite, não me deixaram dormir. O dia apareceu muito diferente de ontem. Hoje a chuva trocou o sol quente de ontem, projectando-nos num limbo de inverno que Paris goza com frequência. Os passeios da cidade estão atapetados de folhas mortas e tornaram-se escorregadios, obrigando o transeunte a enfrentá-los com denodo. De manhã fui com o Robert ajudar a Annie nas compras no Carrefour; de tarde trabalhei neste registo, li, conversei no salão com os meus amigos. Tudo isto, a pensar no Backer e no dia de amanhã em giros pela cidade.