quarta-feira, outubro 27, 2021

Quarta, 27.

Justamente, nem a propósito, quero discorrer sobre o tempo sagrado da leitura. Talvez dedique mais horas nestes lugares que na casa de Palmela. Seja no meu quarto em Mittelhausberg ou aqui em Paris, as ocasiões debruçado sobre os livros parecem-me eternas e habitadas de um mundo que se alheia do sítio onde me encontro, só, o cérebro amarrado à sensibilidade que não se descreve, a curiosidade a derramar sentimentos complexos de espanto e perseverança, duvidas e frágeis certezas. Nada existe, tudo fica bloqueado quando abro um livro e por ele viajo até ao finito transitório do tempo nele impregnado das obstinações humanas. Conhecer, saber, pensar, argumentar, desviar o pensamento do seu criador; fazê-lo contraditório para que nada do que no livro fica estabelecido seja definitivo e nele se sobreponha à dúvida ou à revolta do leitor. Quando fico horas a ler no quarto verde que a Annie diz ser o meu por direito abstraio-me, perco a noção do espaço e do tempo e deixo-me ir no caudal das palavras e temas como se uma vida tivesse montado às minhas costas e eu a levasse para outro mundo distante do meu e lá, nesse firmamento sem lugar nem tempo, eu abastecesse o coração da dádiva que um sincero conteúdo me oferece. A verdade é que um livro ou conquista o coração do leitor ou não merece a sua atenção e, por conseguinte, é “lixo” no dizer de Lídia Jorge. 

         - A seguir a ter ajudado os meus amigos nas compras da semana, fui ao encontro do Michel ao Flore o famoso café, juntamente com o Deux Magots, local de imensas tertúlias literárias nos anos depois da Segunda Grande Guerra. Hoje é a imagem horrenda da era moderna, do turismo de massa, que se embriaga nas esplanadas das grandes cidades ao sol. Tenho a impressão que o único francês que ali estava, era o meu amigo pintor e a única conversa séria era a nossa falando sobre a sua obra surrealista. Resta aos dois pontos a legenda que os faz continuar a facturar à conta da mina Sartre, Beauvoir, Camus, Jean Genet e dos companheiros da Les Temps Modernes, entre outros escritores.  

         - Descemos de Saint Germain- des-Prés a pé até Notre-Dame. Por aí fora, fomos contando as livrarias grandes e pequenas que fecharam portas decerto por via da pandemia. Foi uma razia impressionante. Até o prédio de quatro andares onde desde jeune homme entrava, Chez Gibert, para adquirir livros da Poche, cerrou portas. É, como dizer, a descaracterização de um bairro célebre, carregado de história e lutas pela liberdade, que se entristece e se reduz a uma memória sombria, eclipsada pela fúria chinesa do pequeno comércio ordinário. 

Notre-Dame ressuscita das cinzas

         - No Público online vejo que Portugal caminha para novas eleições em breve - nada que eu não tivesse previsto. A esta quase certeza, acrescento estas palavras do escritor Rentes de Carvalho, tiradas do seu blogue Patrão da Barca: “Segue você, cidadão, a parlapatice do OE 2021? Acha que aquilo, mesmo de longe, tem a ver consigo? Repare na cara dos parlapatões que o discutem, na prosa dos que o "explicam" e no vocabulário dos adivinhos que detalham o que vai acontecer se forem desfavoráveis as conjunções planetárias. 

         Deus lhes acuda, que a nós nada nos salva da miséria. Os parlapatões, com esses é sempre como no "Titanic": empurram quem lhes impede o caminho e saltam para o salva-vidas.”                

         - A China entrou em novo confinamento, obrigando as pessoas a ficar isoladas em casa. Quem desobedecer arrisca-se a sanções severas. Ali não se brinca à democracia do proletariado.