sábado, outubro 30, 2021

Sábado, 30.

Num gesto pouco habitual nele, Robert convidou-me para uma volta de carro pelos Champs Élysées, Concorde, Palais Royal. Chovia, o movimento sendo sábado não era muito embora as duas alas da conhecida avenida tivessem gente bastante que levava a pensar na Paris doutros tempos. A cor cinzenta banhava prédios e pessoas, numa concentração de tristeza e humidade e gotas frias encharcando a psique e retendo num pensamento funesto qualquer infeliz passante. Obras por todo o lado; a cidade prepara-se para o acontecimento maior dos Jogos Olímpicos de 2024. As grandes avenidas ladeadas da arquitectura haussmaniana, resistem a todas as invasões e modas, são estandartes de um tempo que tudo deve a Napoleão III que do fundo da tumba vê transformar-se a pouco e pouco a sua capital igual a tantas outras: Nova Iorque, Rio de Janeiro, Dubai. Alinhados nos passeios regulares, crescem verdadeiros aquários, todos iguais, todos gélidos e sem individualidade, resistindo enquanto identidade nacional apenas o silêncio que banha o interior das catedrais góticas e romanas que atiram o visitante e devolvem à cidade a luz que desce dos zimbórios e floresce como memória no coração do parisiense. 

         - Há minutos apenas, entrei de um passeio pedestre pelo parque de La Courneuve com o Robert (Annie, debilitada, não saiu do carro). Caía de manso a noite, as árvores ofereciam no crepúsculo uma paleta de cores onde se destacavam os ocres e os verdes fugazes. O céu prometia chuva e em redor do grande lago, uma imensidade de aves rastejava à flor da água numa composição balética que nos fez admirar por largos instantes a sua arte. A beleza do conjunto melhora todos os anos. Uma guarda de jardineiros opera a magia restituindo ao lugar a natureza que não se rende às alegorias dos vivos que a pretendem domar. “La poésie est le réel absolu, plus une chose est poétique plus elle est réel”, dizia Novalis (citação de memória). 

         - Antes de partimos, trabalhei com a Annie no meu texto para a galeria de arte, Rue de Thprigny. Com franqueza não esperava ter apenas a correcção de duas vírgulas e três gafes no francês que me deu muito trabalho. A minha amiga foi professora de Letras e culta em tudo o que diz respeito à interpretação de textos literários e escrita comparada. Por isso, os elogios que ouvi ao texto e à versão na sua língua, encheram-me de alegria.