quinta-feira, outubro 21, 2021

Quinta, 21.

O dia acordou banhado de sol depois de uma noite de vendaval. No jardim cá de casa, grossas braçadas das árvores fenderam. Parti, pois, disposto a deixar o Backer para trás e cruzar as ruas e bairros a caminho da Defense onde conheço uma farmácia que racha (para utilizar a expressão do Manel dos anos idos) os preços por metade e tem conselheiros estupendos. Quando saí já a chuva se tinha instalado embora eu quisesse fazer-lhe frente e ir ao Marais almoçar no restaurante onde gosto de ir diante do BGV, Vieille du Temple. A chuva era então intensa, ininterrupta, forte e implacável. Mas que interessava quando a vida no seu esplendor nos chama e cada olhar cruzado é um convite à dança e ao mistério que se esconde nas ruas sinuosas do bairro. Escorrei na cadeira - por sinal a um canto da sala -, com larga montra aberta para a rua onde os transeuntes não paravam de cruzar e deixei-me impregnar da realidade da cidade, sob o ruído da chuva e a atmosfera com seus odores e cores que o céu cendrado acentuava. Esperei então que a chuva parasse. Como tal não acontecesse, sem protecção alguma, sendo já quatro da tarde e querendo evitar a enchente no metro, meti pés ao caminho. Que pode a epidemia numa cidade como esta que abriga milhões de seres? Claro, andando sempre de sobreaviso, sei que nos transportes públicos não consigo cumprir as distâncias estabelecidas e conto com o bom senso dos parisienses que parecem temer o pior, viajando de máscara (quem for apanhado sem ela tem 150 euros de multa), mas sem desinfecção de mãos e muitos de nariz a descoberto. Esta realidade, não nos deve impedir de prosseguir a vida que nos coube, pois esta contém em si mesma todos os antídotos que nos protegem: o entusiasmo, a paixão, a incerteza, a loucura, o resvalo, a mobilidade, o desafio e o mistério.  

         - No avião que me trouxe uma criança de uns três anos, dizia: “Mãe está a chover em cima das nuvens. 

         - Nadei antes de abandonar a quinta durante meia hora. Possantes braçadas que mesmo com a água já muito fria não descoroçoaram. Custou foi entrar. Depois o organismo entra numa espécie de adormecimento, retesa, de algum modo a pele forma uma barreira contra a adversidade e daí a minutos, com o exercício, tudo se harmoniza e já não se sente o incómodo da temperatura. Logo de seguida, adormeci a água, apanhei as romãs, os dióspiros, guardei chaises longues e mobiliário estival, reguei as laranjeiras, pus ordem na cozinha, registei consumos de água e luz, fiz a mala, dei instruções à Piedade, chamei o táxi e meti pés ao caminho para o aeroporto. Não tenho bilhete de regresso porque não quero correr riscos impostos pelo SARS-COV-2. Pouco antes de sair, comprarei a passagem e, seguramente, não viajarei na easyJet.