quinta-feira, maio 30, 2019

Quinta, 30.
Na manhã do dia seguinte à queda da catenária ferroviária, terça-feira, aguardava eu o comboio para Lisboa na estação do Pinhal Novo, quando os altifalantes, com aquela voz metálica e automatizada, anunciavam dez horas de atraso do transporte.” Dez horas!” disseram as centenas de pessoas de pé na gare. Algumas falavam em engano, outras, mudas, olhavam umas para as outras, a ladainha dos atrasos ao emprego, a consultas, perpassava todas aquelas almas assalariadas. Foi quando eu emergi e sentenciei: “Estes tipos começaram a beber logo de manhã, só podem estar bêbados!” Gargalhada unissonante, a má disposição dissipou-se.

         - Todas as amanhãs muito cedo, monto a máquina e tosquio a erva em volta da casa. Há tanto trabalho por aqui que dois homens não davam vazão. É a terceira vez que faço estas maratonas que me deixam os lombares desfeitos. Felizmente ao fim da tarde, faço meia hora de piscina e as forças reconstituem-se num hino à perseverança. Para não falar na vinda da canícula que me faz trabalhar mais hora e meia todos os dias a regar. É tão bom viver no campo!

         - Fisco e GNR andaram a patrulhar as estradas para... cobrar dívidas! Os infractores apanhados em falta, viam casas, carros e outros bens ali mesmo penhorados... Se esta acção tivesse sido levada a cabo por um governo do PSD ou CDS, logo diziam ser uma actuação de extrema-direita. Como foi no tempo do Mágico, é magia pura para engrossar os cofres do Estado. Só não se percebe, porque é que tão obstinado rigor, não é empregado para sacar as dívidas monstruosas e os roubos nítidos de políticos, gestores, banqueiros, autarcas e toda a tropa-fandanga que comanda os destinos deste infeliz e triste país.

         - Eu que me meti a estudar o iPhone que adquiri, percebo agora a magia que estas máquinas infernais exercem nas pessoas. Com efeito, como a Apple não fornece nenhum livro de instruções, o utilizador tem de fazer o esforço de aprender por si. E de facto, o que sai ou vem ter ao nosso aparelho é diabólico, um mundo burlesco dentro do rectângulo que trazemos no bolso. Que custa muito caro e, pelo que percebo, o utilizador não pode em nenhuma circunstância controlar. Quantos sms, mms, apelos telefónicos, entradas na Net e por aí adiante. Perguntei ao empregado da Vodafone quanto gastarão as miúdas e os miúdos que estão viciados no telemóvel e vejo durante o trajecto de P. N. a Lisboa a marrar no aparelho. “Muitos arruínam-se.”

         - A dispersão é inimiga do escritor. Ele tem de ter ritmos diários, imposições laborais, solidão a cobrir os dias, isolamento, silêncio, levitação, enfim, um quadro de vida que se ajuste ao convívio com as personagens, a página em branco, a vadiagem do espírito, o assomo a plataformas de existência que não toquem o mundo real onde a desordem vem acrescentar uma cambiante de inquietações que ele não pode suportar. A criação é um trabalho duro e o criador deve ir até onde suportar. O colete de forças em que as emoções o trazem, desaperta-se e aperta-se consoante as depressões são mais fortes ou mais ligeiras. Mas o objectivo não deve ser nunca desleixado. Vive-se num mundo paralelo e aceita-se o facto como um missão ou se se preferir uma religião.  


         - Às quatro e meia da madrugada acordei com a imagem de uma velha senhora deitada numa cama de espaldar muito alto, num quarto vasto onde dormiam quatro outras filhas em volta da matriarca. Do fundo da casa vinha um sururu que parecia trazer em suspenso todas as figuras que na grande divisão estavam deitadas de orelha e ouvido alerta. Daí a um bom bocado, chega uma rapariga frágil, em choro, que tudo indicava ter sido violada pelo namorado, um homem mais velho e próspero. Sentei-me na beira da cama, retirei o bloco de notas que tenho na mesa de cabeceira, e continuei a história que me chegou dos confins do mundo invisível. Anotei durante quase meia-hora e após regressei ao sono para voltar à realidade depois das sete da manhã.