Quarta, 1 de Maio.
O
casal de jovens santeiros que o Fortuna alberga, aceitaram a encomenda de uma
imagem da Virgem para a diocese de Setúbal. A obra tem um metro e foi esculpida
pelo rapaz em madeira de mogno que o Sebastião Fortuna lhes ofereceu e pintada
pela mulher. Sebastião tem ajudado dedicadamente os dois brasileiros. Bom. A
Igreja de Setúbal acordou pagar pela obra 5 mil e poucos euros, metade do seu
valor, e ainda por cima, no contrato que celebrou com os jovens que aceitaram
por necessidade sufocante, ficou escrito que teriam de pagar 150 euros por cada
dia que ultrapassa-se o prazo estabelecido para a entrega! A Igreja com a mesma
autoridade e brutalidade de qualquer empresa capitalista. Como no tempo de
Miguel Ângelo, Rafael ou Caravaggio.
- Justamente, justamente. Outro dia
fui lá ver a peça e encontrei um padre que estava a inspeccionar a obra.
Perguntei-lhe de caras o que pensava da peregrina ideia de termos de vir a
tratar Deus tu cá, tu lá. O homem encolheu-se, eu descarreguei o fel que não
cabe cá dentro e prossegui dizendo-lhe que a Igreja devia ocupar-se da mensagem
do Senhor e ter em conta as igrejas cada vez mais vazias, em vez de reduzir
tudo à idiotia da cultura de chinelo que impera por todo o lado. Ele quase não
falou. Quando saiu disse: “Eu vou continuar a dirigir-me a Deus com o respeito
que Ele merece”, presumo contra o parecer do patriarcado.
- Ando há uma data de meses às voltas
para achar a chave que fechasse o meu romance O
Matricida. Esta manhã, indo ao volante, encontrei com nitidez a resolução.
A coisa veio com tal força e intensidade, que encostei o carro à beira da
estrada e despejei sobre o bloco que trago no carro, tudo quanto me chegava dos
confins do tempo largo de maturação. Senti uma espécie descarga, um alívio
assentou em mim, o cérebro ficou ligeiro e agora, sem dominar a história,
estou capaz de começar a escrevê-la. O final era para mim indispensável
conhecer, porque o tema, sendo muito complexo de abordar, era muitíssimo mais
difícil de terminar.
- Tempo soberbo, calor, aragem
benfazeja, murmúrio de Verão nas margens da memória e na textura do corpo. Morrer
abraçado a um egrégio dia assim!
- Arrumando as publicações, bilhetes
de avião e de museus da minha estada em Madrid, encontro um bilhete que o rapaz
que nos preparava o pequeno-almoço me entregou. Era um rapaz de uns vinte anos,
moreno, bem constituído, de temperamento reservado. Eu servia de intérprete ao
que os meus amigos desejavam e ele preparava. Com o tempo, sempre que entrava,
perguntava-lhe se estava bem; ele respondia que não sem dizer a razão da sua diária
tristeza. Depois veio o último dia e eu disse-lhe que partia nessa tarde. Perguntou-se
se vivia em Paris, respondi que morava em Lisboa. “Sou português. - Pensava que
era francês. Quero ir a Lisboa daqui a uns meses”, acrescentou. Afastei-me para
tomar o pequeno-almoço e quando saímos fui deixar sobre o balcão a loiça. Foi
quando ele me estendeu o papel que guardei sem prestar atenção. Li esta manhã o
que lá está escrito: “Darling 68722...”
- Levantei-me cedo para cumprir o Dia
do Trabalhador comme il faut
começando e acabando de serrar os grossos troncos das amendoeiras destinados à
lareira. Trabalho árduo, que obriga a baixar, a curvar, a levantar em contínuo.
Foi o meu contributo ao PCP que adora os que trabalham com seriedade e empenho
e nos intervalos erguem o punho gritando aquele slogan que eles fizeram seu,
mas foi criado pela americana Flora Tristan, em 1843: “Proletários de todo o
mundo, uni-vos!”
- Onde os americanos entram, é certo e sabido
que o desespero começa e com ele a fome, a guerra e a miséria. Parece ser o
caso em Venezuela. Aquele que se autoproclamou presidente do país, reuniu meia
dúzia de militares dispostos a morrer por ele. A seguir com apreensão.