quarta-feira, maio 01, 2019

Quarta, 1 de Maio.
O casal de jovens santeiros que o Fortuna alberga, aceitaram a encomenda de uma imagem da Virgem para a diocese de Setúbal. A obra tem um metro e foi esculpida pelo rapaz em madeira de mogno que o Sebastião Fortuna lhes ofereceu e pintada pela mulher. Sebastião tem ajudado dedicadamente os dois brasileiros. Bom. A Igreja de Setúbal acordou pagar pela obra 5 mil e poucos euros, metade do seu valor, e ainda por cima, no contrato que celebrou com os jovens que aceitaram por necessidade sufocante, ficou escrito que teriam de pagar 150 euros por cada dia que ultrapassa-se o prazo estabelecido para a entrega! A Igreja com a mesma autoridade e brutalidade de qualquer empresa capitalista. Como no tempo de Miguel Ângelo, Rafael ou Caravaggio.

         - Justamente, justamente. Outro dia fui lá ver a peça e encontrei um padre que estava a inspeccionar a obra. Perguntei-lhe de caras o que pensava da peregrina ideia de termos de vir a tratar Deus tu cá, tu lá. O homem encolheu-se, eu descarreguei o fel que não cabe cá dentro e prossegui dizendo-lhe que a Igreja devia ocupar-se da mensagem do Senhor e ter em conta as igrejas cada vez mais vazias, em vez de reduzir tudo à idiotia da cultura de chinelo que impera por todo o lado. Ele quase não falou. Quando saiu disse: “Eu vou continuar a dirigir-me a Deus com o respeito que Ele merece”, presumo contra o parecer do patriarcado.  

         - Ando há uma data de meses às voltas para achar a chave que fechasse o meu romance O Matricida. Esta manhã, indo ao volante, encontrei com nitidez a resolução. A coisa veio com tal força e intensidade, que encostei o carro à beira da estrada e despejei sobre o bloco que trago no carro, tudo quanto me chegava dos confins do tempo largo de maturação. Senti uma espécie descarga, um alívio assentou em mim, o cérebro ficou ligeiro e agora, sem dominar a história, estou capaz de começar a escrevê-la. O final era para mim indispensável conhecer, porque o tema, sendo muito complexo de abordar, era muitíssimo mais difícil de terminar.

          - Tempo soberbo, calor, aragem benfazeja, murmúrio de Verão nas margens da memória e na textura do corpo. Morrer abraçado a um egrégio dia assim!

         - Arrumando as publicações, bilhetes de avião e de museus da minha estada em Madrid, encontro um bilhete que o rapaz que nos preparava o pequeno-almoço me entregou. Era um rapaz de uns vinte anos, moreno, bem constituído, de temperamento reservado. Eu servia de intérprete ao que os meus amigos desejavam e ele preparava. Com o tempo, sempre que entrava, perguntava-lhe se estava bem; ele respondia que não sem dizer a razão da sua diária tristeza. Depois veio o último dia e eu disse-lhe que partia nessa tarde. Perguntou-se se vivia em Paris, respondi que morava em Lisboa. “Sou português. - Pensava que era francês. Quero ir a Lisboa daqui a uns meses”, acrescentou. Afastei-me para tomar o pequeno-almoço e quando saímos fui deixar sobre o balcão a loiça. Foi quando ele me estendeu o papel que guardei sem prestar atenção. Li esta manhã o que lá está escrito: “Darling 68722...”

         - Levantei-me cedo para cumprir o Dia do Trabalhador comme il faut começando e acabando de serrar os grossos troncos das amendoeiras destinados à lareira. Trabalho árduo, que obriga a baixar, a curvar, a levantar em contínuo. Foi o meu contributo ao PCP que adora os que trabalham com seriedade e empenho e nos intervalos erguem o punho gritando aquele slogan que eles fizeram seu, mas foi criado pela americana Flora Tristan, em 1843: “Proletários de todo o mundo, uni-vos!”


         - Onde os americanos entram, é certo e sabido que o desespero começa e com ele a fome, a guerra e a miséria. Parece ser o caso em Venezuela. Aquele que se autoproclamou presidente do país, reuniu meia dúzia de militares dispostos a morrer por ele. A seguir com apreensão.