Sexta,
17.
A SIC
apresentou ontem uma reportagem absolutamente reveladora de como a democracia
se aproxima perigosamente da ditadura. Eu explico-me. Os sistemas democráticos
são os que por assim dizer uniformizam os cidadãos e ninguém está acima da lei
e perante esta todos somos reconhecidos por igual. Este princípio remonta às
origens da democracia quando ela era respeitada e se fazia respeitar. Hoje o
que temos é um regime sob a bandeira da liberdade – sobretudo económica e
financeira – que obriga os cidadãos a viver num colete de forças onde só o
capitalismo ensandecido pelo lucro a qualquer preço é a pátria que tomou de
assalto a democracia, alterando-lhe os cânones e submetendo tudo e todos às
suas garras discricionárias. Está dito e redito: as democracias, alguns anos após
a Segunda Grande Guerra, foram a pouco e pouco aligeirando responsabilidades, perdendo
autoridade, passando o grande capital a fazer as leis ou a manipulá-las, reduzindo
à insignificância a classe de políticos medíocres e aproveitadores, palradores
e de arrogância primária confrangedora, formados pelas multinacionais que financiaram
a sua chegada ao poder. Aí chegados convertem-se em marionetas que os senhores
do dinheiro controlam, intimidam, elogiam e derrubam de acordo com os seus
interesses. A globalização e as novas tecnologias vieram ajudar ao
desequilíbrio, com especial cobiça no controlo dos salários e da insustentável
concentração de extravagantes fortunas nas mãos de meia-dúzia. O chamado
capitalismo democrático, mais não é afinal que outro embuste que de ano para
ano vem desvalorizando e escravizando toda e economia produtiva e os operários
e as pequenas e média empresas e por fim as pessoas tout court. Não se pense que ignoro o outro capitalismo de Estado.
Faço o paralelismo, embora saiba que na China como na Rússia a liberdade deixa
muito a desejar e o Estado enquanto proprietário das iniciativas
económicas-financeiras aproveita a seu bel-prazer as estruturas ideológicas
para calar a massa imensa de escravos. Pulso forte, autoridade d´abord.
Surgem estas considerações a propósito
do programa acima enunciado. A nossa velha companhia de seguros Fidelidade, na
obsessão do lucro rápido, decidiu vender, digamos, por atado todo o seu enorme
empório imobiliário aos americanos da Apolo. Se bem compreendi, com muitas derivas
entretanto por empresas sediadas aqui e acolá no imenso mar das offshores. O
resultado foi um tremendo susto, um desastre de toda a ordem para os milhares
de inquilinos que, sem mais aquela, estão ameaçados de expulsão. De um momento
para o outro, viram-se atirados portas e janelas fora sem que ninguém, o
Estado, o Presidente da República, os tribunais, possam acudi-los. São na
maioria pessoas idosas, de fracos recursos, habituadas a uma vida de bairro, no
seu bairro, que uma simples carta com um prazo de vazamento atira para debaixo
da ponte ou para os átrios gélidos da morte anunciada sob a legalidade da lei.
A tal lei que é feita com a ajuda do grande capital e a ajeita a seu modo e
ambição. Mais: nem os artigos normativos do despejo foram cumpridos. A uma
senhora que se impôs alegando o direito prioritário de compra, a companhia
perguntou-lhe se tinha 455 milhões de euros que foi quanto pagaram os
americanos por atado. Pelo que percebi só em Lisboa vão viver para a rua 800
famílias. No resto do país decerto mais umas centenas. Ao que dizia uma visada,
Marcelo ajudou à catástrofe pondo a sua assinatura. Um grande número de casas
já está em nome de sociedades com sede em Malta e os grandes compradores são
fundos americanos ou o raio que os parta. O desprezo, a arrogância, a falta de
ética instalou-se por todo o lado. Este país não é para gente honrada e
trabalhadora – é para traficantes de toda a ordem.
- Enquanto via a reportagem e as
imagens e o tumulto das populações, nomeadamente, de Santo António dos
Cavaleiros, pensava no meu amigo Mário que ali tem casa; e em Julien Green que
passou por idêntica situação dramática aos 95 anos! O proprietário do andar com
200 m2 na rue Vaneau onde o escritor vivia há mais de vinte anos, mandou-lhe
uma carta curta dando-lhe o prazo de um ano para sair. Na sua idade! Ou saía ou
pagava 8 milhões de francos que era quanto o ganancioso pedia, num delírio que
não tinha nada a ver com os preços praticados no VII bairro parisiense. Felizmente
que a justiça veio em seu auxílio. De contrário – diz o admirável autor –
teria de passar o resto dos anos – ele morreu com 98 – na rua ou num valhacouto.