quarta-feira, fevereiro 02, 2022

Quarta, 2.

Glória telefonou de Paris pedindo-me que redigisse uma carta para enviar ao lar aqui de Palmela onde deixou a mãe, informando-o que a progenitora não voltaria para lá devido às condições de higiene e saúde em que o irmão (está aí há dois dias regressado de França) a encontrou. Até sarna a pobre da dona Lurdes tinha. Que tristeza! Eu peço a Deus que me leve antes de conhecer essas cavernas onde a morte vive no meio dos restos de vida e da indignidade humana. Bom. Glória, o filho, a nora apanharam covid e estão num estado miserável. Ela foi daqui há um mês para assistir ao nascimento do segundo neto. Perante os sucessivos apelos para que se vacinasse, sempre recusou sem apresentar razões. O marido, mais inteligente, vacinou-se cá com as três doses – foi o único que não foi infectado. Diz-me a Glória que daqui a três meses vai, enfim, deixar-se inocular, referindo o sofrimento por que tem passado: falta de olfacto, gosto, os músculos das pernas tão fracos que nem consegue andar. (Olha do que eu escapei em Outubro e Novembro do ano passado, em Paris!)

         - A classe política em Portugal, alimenta-se da pobreza e da necedade do povo. 

         - Fui a Lisboa a remoer o romance. Das oito e meia às onze da manhã, enchi página e meia. Todavia, durante as voltas por lá, só pensei no que escrevi. E com pouco entusiasmo. De volta a casa, dado o jantar ao Black, fui espreitar o que todo o dia me atormentou. Li e reli e não ousei apagar o texto, preferindo dormir sobre ele e amanhã decidir se fica ou é atirado ao cesto dos papéis. 

         - Antes de embarcar no Fertagus, às moscas, passei no Corte Inglês para trazer o jantar. E antes de sair do metro, preparei a moeda de dois euros que era tudo quanto tinha no porta-moedas. Mas pela segunda vez o rapaz não estava no seu posto habitual, e eu não pude acudir ao meu pobre. Forma de falar à Estado Novo. Porque no tempo de Caetano, as dondocas ricas e com remorsos de consciência pelo muito que tinham e faltava a 70 por cento dos portugueses, diziam “temos de acudir aos nossos pobres” e a Igreja aplaudia e elas comungavam como virgens celestes.