quarta-feira, fevereiro 16, 2022

Quarta, 16.

Faleceu Artur Albarran. Lembro-me, quando o jornal O Século fechou, termos dito um ao outro: “E agora?” Ele estava nas lonas, sem dinheiro e eu idem, o 25 de Abril na rua e empregos na nossa área precários. Passaram alguns anos e quando saiu um dos volumes do meu diário, ele que apresentava o noticiário na RTP, fechou a emissão com referências elogiosas ao meu livro. O que veio a seguir, não quero pronunciar-me porque nada tem a ver com o amigo que sempre me respeitou e ajudou. A fortuna favoreceu-o, mas arruinou-o e provocou-lhe talvez o cancro que o matou. Ontem, ao deitar, pedi a Deus que o recebesse no seu Reino. Do que possuía – se alguma coisa ainda tivesse – deixou por cá por inútil para aonde partiu.  

         - Levantei os olhos do estaleiro e coloquei-os como quem põe os óculos e retomei o missal de Julien Green, Toute Ma Vie, onde o deixei, p. 600. O escritor, voltou à sua vida de mictórios públicos, saunas, engates de rua. Ao fim de talvez dois anos sages, ei-lo entregando a alma ao diabo. Umas simples pernas nuas quando os rapazes se passeiam em calções, é suficiente para um hino a beauté masculina. Duas horas exaltantes, ao sol, depois de uma manhã na escrita de A Camisa de Linho (título provisório). 

         - Falando de Green estou-lhe grato pelo muito que me ensinou relativamente à técnica e concretização da escrita. Embora nos períodos criativos mais intensos continue a ser perturbado durante o sono, com aparição de personagens, enervamento, presságios e pesadelos, já não me socorro com frequência da Euphytose. Aprendi que a escrita é trabalho próprio do atleta de longo curso, que necessita de tempo, de muito tempo e paciência, e deve brotar sempre que possível de forma natural, isto é, dando livre curso às ideias e às imagens. Tenho que abarcar se tiver de passar duas horas à roda de uma palavra ou período, devo fazê-lo assim como me devo sentar à secretária quando sentir o impulso da escrita. Forma de falar. Em verdade, como se viu ontem, o romance segue-nos para todo o lado, é o nosso crochet como dizia Aquilino.  

         - No Fertagus, uma mulher armada ao fino, dizia insistente ao telefone: “Filha, o que tu precisas é de tomar uns comprimidos para desiludir o sangue.” Independentemente da ausência do contexto, a frase em si é um achado. 

         - Voltando ao Museu Vieira da Silva/Arpad Szenes. Durante anos frequentei-o mesmo quando lá ia comer qualquer coisa à hora do almoço, trabalhando ali perto. É uma casa muito agradável, fraterna, que foi adaptada a museu, mas que em verdade devia ser as divisões íntimas do casal com as suas vidas próprias e independestes lá dentro. Assim como está, é núcleo de telas e esculturas distribuídas por dois andares e umas quantas salas de paredes brancas e portas que comunicam em sucessão de divisão em divisão. Felizmente, nas janelas da frente, avista-se o jardim das Amoreiras que parece uma extensão do edifício com o aqueduto romano a circunscrever o espaço. O sol entra por aquelas janelas de guilhotina e reflete-se nos quadros dando movimento e outras cores, luz e sombras numa contribuição que decerto agrada aos artistas. A Natureza ao banhar aqueles espaços silenciosos, transforma a arte introduzindo densidade, fazendo renascer cada tela do mutismo e do silêncio que o tempo a impregnou. É como se a Arte, a Natureza e o Artista fossem uma só criatura que nos invade e paralisa da religiosidade que emanam. Eis alguns exemplos.  

Vieira da Silva

Arpad Szenes

Menez 

Costa Pinheiro (?)

         - Acabei o trabalho no jardim e meti ombros a aparar os muros em torno da piscina. Comecei chocho e findei galopante. Excelente manhã de trabalho no romance. Aqui faz frio, acendi a lareira do salão.