segunda-feira, junho 14, 2021

Segunda, 14.

A sensação que tenho é que isto anda sem rei nem roque. No país instalou-se uma espécie de anarquia onde vale tudo menos censurar as autoridades. O único que ainda está sob controlo é o zé povinho, tudo o resto anda à solta fazendo o que muito bem lhe apetece. O minúsculo partido IL (Iniciativa Liberal), montou, contra o parecer da DGS, um arraial popular em Santos; admoestado prosseguiu chamando-lhe “uma acção partidária”; o número de casos por Covid-19 está aumentar não só na Grande Lisboa como por todo o lado, mas o Presidente da República diz, num tom de eu quero posso e mando, que com ele “o desconfinamento não volta para trás”; os especialistas e médicos avisam que não é ainda tempo para festejos, novas estirpes do vírus estão aí, e os hospitais começam a encher, Marcelo responde que não são eles quem governam são os políticos, as festanças agrupam aos olhos da polícia centenas pessoas, ninguém ousa intervir; as praias estiveram a abarrotar este fim-de-semana, não apareceu autoridade para controlar... Eu que viajo nos transportes públicos, noto a diferença de comportamentos, numa de tudo ao molho e fé em Deus. Os políticos – Presidente da República, primeiro-ministro, deputados – estiveram na origem criminosa dos milhares de infectados depois do Natal e Ano Novo, dos milhares de mortes, da vida por um fio que nos assustou enquanto povo, mas não aprenderam nada – um voto vale mais que muitas vidas, as rivalidades provincianas mais que SNS.    

         - Li no editorial do Público uma coisa que ignorava: o RGPD (Regulamento Geral de Protecção de Dados), custa qualquer coisa como 140 milhões de euros por ano! Portanto, existem meios que nos protegem por direito. Então como foi possível que o bebé Nestlé os tivesse furado sem que nenhuma instituição desse por isso? 

         - Gostaria de acrescentar algo ao que disse falando de Julien Green outro dia (ver Segunda, 7). Abrindo ao acaso o seu testemunho pungente, deparo com esta entrada, sublinhada por mim, sem data, de 1940, pág. 1241, que revela a minha observação: “Le vice commence où finit la beauté. Si l´on analysait l´impression que fait un beau corps, on trouverait quelque chose qui s´apparante à une émotion religieuse. L´oeuvre du Créateur est si belle que le désir de la transformer en instrument de plaisir ne vient qu´après un sentiment confus d´adoration et émerveillment.”

         - Ontem despachei-me para a Brasileira manhã cedo. Pensava eu poder trabalhar sossegado mas, para grande surpresa minha, o café abarrotava de turistas sem máscara num convívio antes coronavírus. Sentei-me no interior, na mesa do fundo, e aí fiquei isolado de tudo por duas horas. Reli vinte páginas da primeira parte de O Matricida e quase chorei de desgosto. Constatei, mais uma vez, que a rotina, os dias pautados pelo trabalho perseverante, são imprescindíveis à actividade da escrita. Um romance tem de nascer da obsessão, da escravatura, da entrega absoluta. De contrário, é como um passeio pedestre ao longo duma avenida onde nos cruzamos com muita gente sem vermos um só transeunte. A tarefa, esta, é muito difícil, mas não vou desistir mesmo que tenha de recomeçar trinta, quarenta vezes. Para me compensar, fui almoçar ao Corte Inglês. Escolhi o exterior com aquela vista sobre a cidade banhada de sol. Pouca gente, uma aragem suave rodopiando, um princípio de algo balbuciado entre os ruídos lá longe e os sortilégios da memória desassossegadamente presentes.