quinta-feira, junho 17, 2021

Quinta, 17.

O fardo da pandemia não nos larga. As vozes agoirentas já nos anunciam a chegada da quarta vaga da Covid-19. Enquanto a primeira irrompeu no Norte, esta começa a Sul, em Lisboa. 

         - Adoro os dias como o de ontem. As horas passando numa ronceirice fraterna com os livros, as pequenas coisas, os insistentes olhares sobre o passado para reter o que o tempo quer apagar. Em dias assim, apesar do que expus, não são dias inúteis onde nada de importante acontece. Pelo contrário. São dias robustos, abastados de múltiplas coisas que se foram arrastando quando as horas e os dias pareciam encalhados algures num corpo que não me pertencia. Digo a mim mesmo que não quero fazer nada e depois, a pouco e pouco, como uma chamada à razão, eis que levanto uma mão de livros da mesa do salão para ir lá acima arrumá-los nas estantes; tomo notas dos sublinhados para fichas no computador; vou lá fora trabalhar um pouco no jardim; faço um almoço diferente, mais apurado, como se fosse domingo e eu tivesse o tempo todo à minha disposição; admiro pela enésima vez o interior da casa, detendo-me nas telas do Carlos R. Pinto onde descubro há mais de trinta anos um detalhe novo; contemplo através das janelas as árvores cujo movimento é sempre dissemelhante, reinventado pela luz, as sombras, a projecção do azul do firmamento; respiro este silêncio divino, carregado de anátemas de tempos idos, hoje sublime porque me envolve num paraíso terreal, construído para desfazer o homem que aqui permanece na concupiscência que teima em não o  largar, espécie de pesadelo que tem de carregar até ao fim dos seus dias; escuto a inesperada canção da chuva que me acordou, os olhos no céu pardacento, nas criaturas vegetais iluminadas pelo prazer dos pingos massajando-lhes os dorsos tenros; impregno-me desta massa compacta de vida, respiro-a, absorvo-a na certeza que retenho a centelha de vida que me há-de fixar a este chão de alegrias múltiplas, a este silêncio pejado das vozes juvenis do Universo imaterial, aqui transudadas para erguerem os dias do dilúvio da felicidade imortal de mundos inacessíveis...  

         - A Piedade trouxe-me os primeiros figos. São escuros por fora e vermelhos por dentro. 

         - Registo estas entradas sob o efeito da dor dos implantes. Tenho um saco de gelo numa mão e escrevo com a outra. Que dizer? Hoje muito pouco, apenas o facto de achar uma maravilha a evolução destas técnicas. E ainda o facto de agora poder passar pelo socialista François Holland sem que ele diga: “Ali vai um pobre desdentado.”