sábado, junho 19, 2021

Sábado, 19.

A casa. Olho-a de um modo diferente quando o sofrimento me invade. À minha volta aperta-se o cerco de refúgio, de fortaleza, e o meu olhar enche-se de ternura por estes espaços onde me sinto em segurança e paz. Há uma espécie de imperturbabilidade que a toma por inteiro, de modo a dar-me aquilo de que estou necessitado: um certo contorno na viagem das sombras, uma opacidade de luz que fecha o enquadramento onde os meus olhos pousam por ordem do coração e imposição da dor, reduzindo o salão a uma divisão secreta, onde estou estirado na chaise longue inspirando a atmosfera que contribui à minha recuperação. Cada elemento que a compõe – livros, quadros, sofás, móveis, mesas, estantes e objectos – dispostos há anos quando os trouxe da casa de S. Marçal, ainda impregnados do impulso que me tomou quando pude deixar o Príncipe Real e instalar-me no campo, todo esse entusiasmo do jovem-homem galopando o destino, é agora, nesta hora de tibiezas, neste recolhimento de uma intimidade de metástases psicológicas que ferem, isolam, o último refúgio acampado na misericórdia dos dias e das horas que por ínvias esferas se metamorfoseiam em recordações sólidas, intensas como este fim de tarde que agoniza diante dos meus olhos turvados de mágoa. De quando em vez um amigo lembra-se do pobre solitário, particularmente a Alice e o António que falam todos os dias, e o mundo entra nestes muros trazendo a renovação na esperança, a confiança no silêncio ligeiro povoado pela passarada que nada sabe do que se passa dentro dela. E no entanto, não me vendo assomar à porta espreitam pelas janelas a certificarem-se se estou bem e a convidarem-me para um passeio ao sol tímido que dá saúde e introduz no coração as energias perdidas. Sorrio-lhes e volto a fechar-me no latejo das picadas que a miúde sinto. Estiro-me no sofá e quase me entrego a um sono moribundo, daqueles que não recuperam, antes nos atiram para o poço da desgraça. Dou conta que os meus autores estão mudos a olhar-me com compaixão. Ouço os mais aristotélicos ou os estoicos a puxarem pelo meu moral afundado no lodo da imagem de mim. Mas o tempo imobilizou-se, o sol desapareceu e tenho esperança que amanhã será outro o dia. Antes porém, a casa será invadida pela noite e fechadas as portadas, as luzes acendidas, o conforto cingindo-me a alma, sou o guerreiro que ficará de alerta e combaterá o desespero, a febre, e toda a panóplia de enfermidades que não tenho vida para suportar...