domingo, julho 22, 2018

Domingo, 22.
O livro de Saul Bellow ainda não subiu à biblioteca de cima. De quando em vez, releio uma ou outra carta, forma de conhecer melhor o escritor e a vida que foi a sua. É muito importante a vida vivida pelo escritor. É dessa vivência que sai a obra, documentada pelos sofrimentos, alegrias e tristezas que lhe couberam na tômbola dos dias. E o autor nascido no Quebeque, judeu, filho de pais imigrados nos Estados Unidos, passou bastante para nos contar não só a sua experiência, como a daqueles que se atravessaram na sua vida difícil. Sobretudo as mulheres. Bellow casou uma série de vezes e algumas das mulheres não foram nada simpáticas para com ele. Uma arruinou-o depois de ter ganhado o Prémio Nobel, em 1976. É verdade que também o sistema jurídico americano, que costuma enfiar-se na cama dos casais, permite toda a sorte de fantasias que um ou outro dos esposos aproveita em seu exclusivo e egoísta proveito. Na realidade, o fim de vida do escritor, não foi propriamente a antecipação do Paraíso, como atestam as cartas nas pp. 359, 370 a 374 da tradução de Salvato Telles Menezes para a Quetzal.

         - Eu lamento-me todos os anos porque a realidade também não muda. O facto é que, às nove da manhã, estou já nos limites da minha energia. Para trás ficaram regas, puxar de mangueiras, deslocações, caldeiras para a água, e todo o cerimonial que é levar sustento a árvores, flores, canteiros pequenos e grandes, sebes, e passo. Mas um lamento não é uma queixa. Um lamento é uma oração mal soletrada, um desabafo murmurado, atrás do qual se esconde a alegria de viver desta forma original, neste local santificado pelo silêncio, a lastração solar, a inspiração da arte enquanto razão e dimensão de vida. Tirem-me daqui e morro sur-le-champ, aussitôt.


         - Por exemplo. Neste momento escrevo estas linhas na mesa larga do pátio. O calor já abrandou, um vento ligeiro passa por cima da casa térrea onde me encontro à porta, os pássaros menos sufocados, cantam alegremente, o Black está deitado na chaise longue qual monarca apoiado nos almofadões bordados a ouro, os repuxos que regam as laranjeiras e limoeiros, siflam um salmo que nenhum compositor consegue pôr na pauta musical, o silêncio, o meu doce companheiro de todas as horas, segreda-me ao ouvido coisas que não ouso traduzir em palavras. O que aqui está em grandeza é a paz que nenhum mausoléu consegue conservar. Podia construir uma perífrase que nem por isso fugiria à realidade.