Domingo, 22.
O
livro de Saul Bellow ainda não subiu à biblioteca de cima. De quando em vez,
releio uma ou outra carta, forma de conhecer melhor o escritor e a vida que foi
a sua. É muito importante a vida vivida pelo escritor. É dessa vivência que sai
a obra, documentada pelos sofrimentos, alegrias e tristezas que lhe couberam na
tômbola dos dias. E o autor nascido no Quebeque, judeu, filho de pais imigrados
nos Estados Unidos, passou bastante para nos contar não só a sua experiência, como
a daqueles que se atravessaram na sua vida difícil. Sobretudo as mulheres. Bellow
casou uma série de vezes e algumas das mulheres não foram nada simpáticas para
com ele. Uma arruinou-o depois de ter ganhado o Prémio Nobel, em 1976. É
verdade que também o sistema jurídico americano, que costuma enfiar-se na cama
dos casais, permite toda a sorte de fantasias que um ou outro dos esposos
aproveita em seu exclusivo e egoísta proveito. Na realidade, o fim de vida do
escritor, não foi propriamente a antecipação do Paraíso, como atestam as cartas
nas pp. 359, 370 a 374 da tradução de Salvato Telles Menezes para a Quetzal.
- Eu lamento-me todos os anos porque a
realidade também não muda. O facto é que, às nove da manhã, estou já nos
limites da minha energia. Para trás ficaram regas, puxar de mangueiras,
deslocações, caldeiras para a água, e todo o cerimonial que é levar sustento a árvores, flores, canteiros pequenos e grandes, sebes, e passo. Mas um lamento
não é uma queixa. Um lamento é uma oração mal soletrada, um desabafo murmurado,
atrás do qual se esconde a alegria de viver desta forma original, neste local
santificado pelo silêncio, a lastração solar, a inspiração da arte enquanto
razão e dimensão de vida. Tirem-me daqui e morro sur-le-champ, aussitôt.
- Por exemplo. Neste momento escrevo
estas linhas na mesa larga do pátio. O calor já abrandou, um vento ligeiro
passa por cima da casa térrea onde me encontro à porta, os pássaros menos
sufocados, cantam alegremente, o Black está deitado na chaise longue qual monarca apoiado nos almofadões bordados a ouro, os
repuxos que regam as laranjeiras e limoeiros, siflam um salmo que nenhum
compositor consegue pôr na pauta musical, o silêncio, o meu doce companheiro de
todas as horas, segreda-me ao ouvido coisas que não ouso traduzir em palavras. O
que aqui está em grandeza é a paz que nenhum mausoléu consegue conservar. Podia
construir uma perífrase que nem por isso fugiria à realidade.