Terça, 8.
Eu não desarmo. Daí que tenha outro dia
exposto ao tribunal aqui da vila, o direito que me assiste a ver devolvidos os novecentos
euros que a autarquia me cobrou pelo gasto de água que não gastei. Fui recebido
por um jurista a quem expus os princípios que me norteiam. Antes, porém,
disse-lhe: “Se o senhor me vem dizer que é a lei, eu debando imediatamente.” O jurista
João Manuel Pereira, inteligente e sem teias na cabeça, ouviu-me com um misto
de surpresa e divertimento. A conversa prosseguiu, enfunou de entusiasmo, e no calor
da minha argumentação, pareceu-me vê-lo satisfeito por ter talvez, enfim,
alguém que não está na sua frente passivo e conformado com a justiça dos
homens. A discussão durou mais de uma hora, cruzando valores morais com as leis
gerais da República que não têm em conta as circunstâncias precisas de cada
cidadão, antes se aprumam em torno de princípios administrativos. Porque a
Justiça hoje é uma manta de retalhos, feita à medida das centrais de advocacia
que têm o condão de transformar assassinos e ladrões, corruptos e malfeitores
em santos e honestos cidadãos. Depois há uma justiça para os pobres – esta,
sim, sem palavreado, ligeira ao dizer “está na lei”, “é da lei”, “estamos a
aplicar a lei”; enquanto a outra vai aos confins do mundo, volta e retorna, e
ao fim de muitos anos levanta-se o senhor juiz e clama: “Absolva-se o réu!” Em O juiz Apostolatos ocupo-me da Justiça, faço uma grande reflexão sobre o tema e espero que os meus leitores me acompanhem e a Hegel que quis aproximar o destino humano cristão do ideal antigo.
- Não sei a que propósito, encontrando-me eu na Brasileira, apareceram
duas raparigas por sinal muito airosas, a pedirem-me uma entrevista sobre o 25
de Abril. Disseram-me que tinham lá ido na véspera à minha procura e eram
alunas do curso de jornalismo (suponho) na Católica. Declinei o convite e ante
a insistência (a conversa devia ser gravada e filmada) empurrei-as para o
arquitecto Alhero e João Corregedor. O primeiro aceitou, o segundo disse que ia
pensar. Que posso eu dizer sobre o “Dia da Liberdade”! O melhor possível, pois
foi por ele que me bati. Mas depois veio o Primeiro de Maio de 74 e aí passei a
narrar a história de frente para trás. A verdade é esta: enquanto houver
pessoas da minha geração para contar como foi, a democracia balança mas não
cai. A seguir, quando a história for revisitada pelos que hoje dela usufruem,
com as falsidades, ódios e aproveitamento dos que fizeram o 25 de Abril, traçando
a seu modo um período de estrutura ideológica ainda fracturada pelo que
viveram, muita trapalhada se interpõe e só o tempo, esse largo espectro de
bonança, enterrados os protagonistas e o caudal dos acontecimentos expostos a
luz da verdade nua e crua, poderá ser conhecido, imparcial e desapaixonadamente,
o que foi o antes e o pós-25 de Abril de 1974.