sábado, abril 01, 2017

Sábado, 1 de Abril.
Atravesso um período de grande aceleração mental de que foi testemunho ontem a tertúlia no atelier do Guilherme. Reunimo-nos lá meia dúzia de amigos a seguir ao almoço no Príncipe até quase ao fim da tarde. O pretexto foi ficarmos todos numa sessão fotográfica disfarçados entre o material do artista, os cavaletes, as tintas, os planos que mostram os quadros, as esculturas e estão em profusão por todo o lado e formam a atmosfera sagrada do pintor. Mas depois a coisa descambou para a política e aí eu não me contive. O Alexandre, actor, que eu venho a descobrir como um ser impecável, evidentemente de esquerda embora rendido a aspectos que o sistema capitalista sabe como ninguém cativar, quanto mais não seja quando, sem se disfarçar, vai estendendo as suas manápulas até sufocar os mais lúcidos dos cidadãos. Momentos por vezes violentos na explanação das ideias, mas sempre assentes numa espécie de amizade implícita que nos une e não deixa reservas nem coriscos de mágoas.

         - Anteontem, atirando-me literalmente à descoberta do dia inundado dos raios solares, plantei as macieiras e cortei os relvados em redor da piscina. Trabalho custoso, devido ao calor, à força despendida nas operações, ao afago da inércia que por períodos se instala e não quer zarpar. Detesto a choldra mesma aquela que a natureza tem tendência a deleitar-se. Tenho por isso a zona que cerca a casa cheia de erva daninha com um metro de altura. A roçadora desmaiou há tempos e não mais ressuscitou. Vou ter por conseguinte de comprar outra. Antes porém, quero saber quanto nos vai surripiar a nossa extremosa câmara no IMI, esta pepita de ouro que o Estado descobriu para sacar mais dinheiro aos contribuintes. A Piedade que já recebeu o veneno, foi aumentada para o dobro.

         - Seja como for, aberto o lounge, no centro do qual está a mesa recuperada, foram forradas as cadeiras e a chaise longue, o grande guarda-sol, as hortênsias verdes de tentação, é lá que reside a paz, a beleza e a arte perdura no olhar, nos pensamentos cativados, no silêncio que eterniza a multiplicação de imagens, de sons, na companhia do cuco que acabou de chegar, dos grilos, das sardaniscas, das abelhas, do Black que goza em murmúrios repenicados de tudo o que voltou para transformar este sítio e o seu solitário morador, num novelo de afectos que nem Marcelo consegue suplantar. 


         - Seja como for, repito, as tardes longas abafadas do estio ainda doce, com a música da passarada rondando as janelas abertas, um livro esquecido nos joelhos entre duas reflecções, diante da paisagem majestática, do murmúrio da água e dos odores das ervas aromáticas, quando o sol declina do outro lado da quinta, já vermelho da impetuosidade que acode aos longes horizontes em chamas, quando as figueiras, as macieiras, as amendoeiras, os pessegueiros, as pereiras, após as recentes chuvadas, se ergueram vestidas da magnificência de verdes, lindas que enfeitam os olhos, resplandecentes no viso, projectando sombras de anular todos os pintores, nesta atmosfera mediterrânea, criada desde tempos imemoriais, incandescida de memórias, onde o amor ficou soterrado na expressão suprema do silêncio, aqui onde chegam na revelação indizível todas as vozes do mundo, aqui, rodeado das sinfonias perfeitas que soam por todo o lado, aqui me encontro de braços abertos para saudar a Primavera.