Quinta, 20.
Fui
a uma consulta oftalmológica de rotina ao Capuchos. Como sempre a balbúrdia e o
espectáculo da decadência abrasava tudo e todos. Os altifalantes debitavam
senhas, números, nomes de médicos que ninguém ousava ouvir a par de os ecrãs instalados
nos corredores estarem avariados. As funcionárias auxiliares, escolhidas a dedo
pela sua imperícia, o cambiante da voz, o corpo obeso, uma certa atarantação
faziam o que podiam e o que podiam era pouco porque é a própria organização que
está mal pensada, mal executada. Um homem gritou ao meu lado: “Calem-se porque
ninguém consegue ouvir a chamada.” Nesta psicopatologia encontramos as mulheres.
Mulheres anafadas, aparvalhadas, dependentes da acumulação de falhas culturais,
de afectos mal conceptualizados, de dependências excessivas de medicamentos, da
solidão e das patologias a ela associadas. Quando me vi livre daquele inferno,
feita a observação acompanhada da certeza de que não há glaucoma, tensão ocular,
diabetes e de até a graduação das lentes se manter, enfiei-me num táxi e fui a
correr ao encontro dos meus amigos, no Príncipe.
- O almoço estava no fim, o tempo não
apressa nenhum deles. Por isso, pude comer tranquilamente, com direito a expor
a minha paixão por Margarida Apocalipse que nenhum dos presentes conhecia (à
mesa estava um comandante de Marinha deslocado nos Açores), salvo o estimável Carlos
Soares que logo se associou a mim em entusiasmo e erudição. Quando disse que
havia contactado o Dr. Gamboa, grande especialista da obra da monja, na sua
casa de S. Miguel, logo o Irmão juntou palavras de reconhecimento pelo
historiador e acrescentou ter ido, inclusive, visitar o quarto onde a freira do
séc. XIX faleceu. Valeu a pena, portanto, o encontro. Descobri alguém que
conhece e admira a obra da ilustre religiosa. O comandante, porém, quis saber
pormenores do meu interesse e perguntou-me - sugerindo ir tratar de arranjar a
possibilidade de eu voltar à ilha para pesquisar - “É para dizer bem ou mal?”
Percebi ali a palmatória da censura e disparei: “A mim ninguém me impõe nada. Falarei
como entender e não para corresponder a esta ou aquela entidade. Se o senhor
quiser arranjar-me viagem e alojamento, agradeço. Mas saiba que sou uma pessoa
livre de pensar e actuar pela minha cabeça.” O simpático homem, encolheu-se;
Margarida Apocalipse, piscou-me o olho.
- Recusei o convite para seguir com
eles para o atelier do Guilherme. Aquele reino é demasiado atractivo e
enfronha-nos num mundo onde o tempo parou em esferas cintilantes de cores e
artifícios. Ainda porque queria comprar um aparelho e de caminho o jantar no
Corte Inglês, tudo apressado para chegar a casa a tempo de ver des racines et des ailes, apesar da
dificuldade em ver e enfrentar o sol devido ao exame à retina operado pelo Dr.
Deslandes e à falta dos óculos para o sol esquecidos em casa.
- Nesta altura vinha a calhar começar
algo sobre a enigmática freira. Até porque já fui várias vezes a S. Miguel na
peugada da minha amiga. Tenho o romance empacado, não dou com nenhuma porta que
me leve à descoberta das personagens. O primeiro capítulo deixou-me de rastos,
é uma merdelhice. O alinhamento do juiz Apostolatos está definido, mas falta
tudo o resto. Para me alegrar, desforro-me com leituras, tratamento do campo,
do jardim. Mas à minha volta reina o caos, a incerteza, i am down, down. Só o Senhor me pode salvar.