quinta-feira, abril 20, 2017

Quinta, 20.
Fui a uma consulta oftalmológica de rotina ao Capuchos. Como sempre a balbúrdia e o espectáculo da decadência abrasava tudo e todos. Os altifalantes debitavam senhas, números, nomes de médicos que ninguém ousava ouvir a par de os ecrãs instalados nos corredores estarem avariados. As funcionárias auxiliares, escolhidas a dedo pela sua imperícia, o cambiante da voz, o corpo obeso, uma certa atarantação faziam o que podiam e o que podiam era pouco porque é a própria organização que está mal pensada, mal executada. Um homem gritou ao meu lado: “Calem-se porque ninguém consegue ouvir a chamada.” Nesta psicopatologia encontramos as mulheres. Mulheres anafadas, aparvalhadas, dependentes da acumulação de falhas culturais, de afectos mal conceptualizados, de dependências excessivas de medicamentos, da solidão e das patologias a ela associadas. Quando me vi livre daquele inferno, feita a observação acompanhada da certeza de que não há glaucoma, tensão ocular, diabetes e de até a graduação das lentes se manter, enfiei-me num táxi e fui a correr ao encontro dos meus amigos, no Príncipe.

         - O almoço estava no fim, o tempo não apressa nenhum deles. Por isso, pude comer tranquilamente, com direito a expor a minha paixão por Margarida Apocalipse que nenhum dos presentes conhecia (à mesa estava um comandante de Marinha deslocado nos Açores), salvo o estimável Carlos Soares que logo se associou a mim em entusiasmo e erudição. Quando disse que havia contactado o Dr. Gamboa, grande especialista da obra da monja, na sua casa de S. Miguel, logo o Irmão juntou palavras de reconhecimento pelo historiador e acrescentou ter ido, inclusive, visitar o quarto onde a freira do séc. XIX faleceu. Valeu a pena, portanto, o encontro. Descobri alguém que conhece e admira a obra da ilustre religiosa. O comandante, porém, quis saber pormenores do meu interesse e perguntou-me - sugerindo ir tratar de arranjar a possibilidade de eu voltar à ilha para pesquisar - “É para dizer bem ou mal?” Percebi ali a palmatória da censura e disparei: “A mim ninguém me impõe nada. Falarei como entender e não para corresponder a esta ou aquela entidade. Se o senhor quiser arranjar-me viagem e alojamento, agradeço. Mas saiba que sou uma pessoa livre de pensar e actuar pela minha cabeça.” O simpático homem, encolheu-se; Margarida Apocalipse, piscou-me o olho. 

         - Recusei o convite para seguir com eles para o atelier do Guilherme. Aquele reino é demasiado atractivo e enfronha-nos num mundo onde o tempo parou em esferas cintilantes de cores e artifícios. Ainda porque queria comprar um aparelho e de caminho o jantar no Corte Inglês, tudo apressado para chegar a casa a tempo de ver des racines et des ailes, apesar da dificuldade em ver e enfrentar o sol devido ao exame à retina operado pelo Dr. Deslandes e à falta dos óculos para o sol esquecidos em casa.


         - Nesta altura vinha a calhar começar algo sobre a enigmática freira. Até porque já fui várias vezes a S. Miguel na peugada da minha amiga. Tenho o romance empacado, não dou com nenhuma porta que me leve à descoberta das personagens. O primeiro capítulo deixou-me de rastos, é uma merdelhice. O alinhamento do juiz Apostolatos está definido, mas falta tudo o resto. Para me alegrar, desforro-me com leituras, tratamento do campo, do jardim. Mas à minha volta reina o caos, a incerteza, i am down, down. Só o Senhor me pode salvar.