Sábado, 1 de Novembro.
Não estou em mim. Depois de três meses de uma dificuldade absoluta em ver para ler, observar imagens ao longe ou simplesmente ver televisão, eis que, tendo entrado na loja do Chiado com o objectivo de exigir o dinheiro que gastei nos óculos pós-operação à catarata, sou recebido por um funcionário que aguentou o ímpeto da minha revolta e a transformou num competente exame corrigindo a progressão das lentes que tinha sido mal feita e me custaram dias e horas de sofrimento. Saí de lá outro, substitui inclusive a armação e no final tudo me foi dado gratuitamente. De quinta até hoje, querendo compensar o tempo perdido para a leitura e a escrita, dupliquei as horas e os serões ficaram mais dilatados, uma vez terminado o noticiário da SIC e não sendo eu amante dos dejectos televisivos, logo me entreguei às minhas actividades no repouso sereno das noites plenas de silêncio.
- Quinta-feira fui ao Centro de Saúde para uma consulta de rotina marcada com dois meses de antecedência quando antes bastava uma semana. A Dra. Vera Martins achou-me óptimo e também ela me disse estar com muito bom aspecto, mais novo e etecetera e tal. Vou fazer a habitual bateria de exames anuais e depois se verá se ela tem razão. Por outro lado, como sou refractário a medicamentos e continuo longe deles, tendo recusado vacinar-me, pedi-lhe que me receitasse Ben-u-ron para qualquer percalço e assim saí directo para o meu restaurante de outros tempos quando morava perto, no Largo do Rato. Apesar da chinfrineira (os portugueses falam cada vez mais alto seguindo a pouca educação dos africanos), consegui isolar-me e voltar aos tempos da minha comummente entrega aos dias lassos e longos da rotina citadina. É facto que voltei as costas à minha cidade de nascença, mas também é verdade que ela já não me reconhece nem eu a ela. Estamos de costas voltadas porque não consigo suportar o desamor que entretanto se instalou por todo o lado, a balbúrdia, o ar desarrumado que reina nas suas ruas e praças. Talvez uma saudade rasteira ainda me aborde quando caminho por aqui e por acolá, talvez no ar ainda impere o perfume da minha adolescência turbulenta, as memórias corridas pelo vento sacudam fantasmas e anjos, instantes e perigos, paixões e imprevistos, mas já não absorvo o ritmo descontrolado que foi o meu, querendo chegar a tudo, dos encontros imprevistos, às dores das exaltações abandonadas numa curva, num café, sob as árvores dos jardins, dos candeeiros, as corridas loucas entre Cascais e o Rossio. É verdade que nada disso morreu e em murmúrios muitas vezes recordo as noites acossadas e vazias, quando tornava a casa insatisfeito e dorido de sentimentos e falsas promessas, a imagem bela que tinha intenção de emoldurar e ficara esquecida na dobra da negrura, pisada pelas palavras mal balbuciadas, pelos ciciamentos de que a noite se apropriou, deixando-me ali, vazio e triste, sob o céu escuro onde o amor no momento em que se anunciara logo morria.